segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Véspera de Natal

Ah, chegou a véspera de Natal! Uma época de paz, amor, alegria... e gente reclamando que o Natal é uma época hipócrita, gente reclamando de gente reclamando que o natal é hipócrita, de pessoas fazendo ironias ao significado do natal e pessoas reclamando que as pessoas se esqueceram do verdadeiro significado do natal (sobre isso ouço desde que me conheço por gente, então... quando é que as pessoas se lembraram desse significado alguma vez?) e gente ignorando tudo isso e desejando um feliz natal a todos seja lá o que ele representa.


Acho que sempre falo disso em todos os Natais, deve ser porque as pessoas falam e reclamam sempre das mesmas coisas, eu não poderia fugir à regra neste caso. Não importa o que o Natal seja, se você é cristão, celebre o nascimento de Cristo, se não é, pode usar a data para festejar com família e amigos. E dar presentes sim! Por que não? Adoro dar presentes quando posso, e recebê-los, claro! Hipocrisia? Essa deve ser a hipocrisia mais gostosa do mundo.


Eu sei que existem pessoas passando fome e que festejamos com nossas gordas comilanças enquanto pessoas lutam para sobreviver nos quatro cantos mais pobres do mundo, mas assim não o é sempre? Festejar o Natal com toda a pompa e circunstância não é sinônimo de ignorar o resto do mundo, quem o faz no dia 25 de dezembro, faz também no ano inteiro. Que o tal espírito natalino te invada a alma e reflita da maneira que lhe aprouver, beba, coma, presenteie, abrace, beije, ame... e se ainda achar que isso tudo é hipocrisia, você ainda pode abraçar um mendigo ou as crianças pobres em vez de apenas postar fotos deles no Facebook, falar que o Natal é hipócrita e depois ir cear no aconchego do seu lar.


Feliz Natal a todos os meus queridos! Que ele venha repleto, acima de tudo, de AMOR.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

MT - Diário de Bordo: da teta da vaca ao bacon gigante

Hoje o diário de bordo será mais curto, nem sei bem o que está acontecendo com os protestos e bloqueios de estrada por aqui. Mas ao menos durante a noite passada liberaram por um período para deixar os carregamentos chegarem à cidade, os postos já têm gasolina outra vez e não faltará comida no mercado!


Depois de um sono agitado e não muito tranquilo, acabei acordando tarde, 10 horas da manhã o sol já estava de matar (está achando muito calor em São Paulo? Então nunca venha para o interior do Mato Grosso!), fui buscar a bicicleta da Vanessa lá na Agritex (a loja que vende os monstrinhos colheitadores e tratores) e andei por aí, enfiei-a na lama, entrei no meio do mato e fui atacada por formigas, mas consegui boas fotos de pássaros em pleno voo.


A Vanessa estava puro stress por conta de uma auditoria na loja, e eu só apareci por lá mais tarde depois que tudo acabou. Para desestressar, Diego foi nos buscar para tirar leite de vaca! E enfiamos aquela bike dentro do carro, não sei como entrou (e nem como tiramos depois!) e lá fomos para o sítio. Chegamos a tempo de ver o pôr do sol, incrivelmente belo e reconfortante. As vacas foram tiradas do pasto e então lá fui eu extrair o leite das pobres vaquinhas. Os donos do sítio são gente muito simples e acolhedora, e eu ainda saí com quatro litros de leite, que a Vanessa vai ferver pra mim e congelar para que eu possa levar. É obvio que não fui eu quem extraiu esses quatro litros, eu jogava mais lente fora do que dentro do balde (não, eu não tive coragem de tomar o leite recém-extraído), o leite que levei foi tirado com aquele o aparelho de sucção elétrico (tem nome pra isso??), foi bem divertido!


Já era de noite quando fui ver o maior bacon do mundo! Um porco de 300 kilos, com quase dois metros de comprimento e na altura da minha cintura. Medo! Entrei no chiqueiro com a Vanessa e mexi no bichinho... tentei não pensar que ele está sendo engordado para o abate. Quero acreditar que a carne que como é produzida no mercado! Tão simpático o “porquinho” gigante! Me diverti! Essas caipira de cidade grande...


Depois fizemos um parto para tirar a bicicleta do carro, ela entrou mais fácil do que saiu! A noite terminou em pizza na casa do Diego. E amanhã é dia de fazenda!

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

MT - Diário de Bordo: Um dia com sapos, corujas e sem gasolina

Hoje acordei e fui rodar mais um pouco com a bicicleta da Vanessa enquanto ela trabalhava com seus tratores e colheitadeiras. Fiz comprinhas de mercado, farmácia e fotografei mais um pouco. Fui buscar empadas na Panificadora Central e consegui me perder pela primeira vez em 'Querê'! Já cansada e torrada pelo sol, fui à loja dos monstros desmatadores (mas que ampliam o agronegócio que sustenta a vida do povo dessa região). Lá chegando inteirei-me das notícias, haviam fechado mais estradas em Nova Xavantina, Água Boa e Barra do Garças. Nada chegava a ou saia de Querência, já havia começado o racionamento de combustível na cidade e, no final da tarde, não havia mais gasolina disponível.


A preocupação é que comece a faltar suprimentos nos mercados (acho que amanhã já vou me garantir com mais algumas comprinhas para a minha estadia por aqui!) e eu só espero que as estradas sejam liberadas antes do dia da minha partida. Teoricamente Água Boa abre amanhã, mas enquanto as negociações prosseguem para abertura de algumas estradas, outras fecham, porque a situação está bem complicada. Os produtores de gado têm que deixar suas terras e buscam lugar para deixar seu gado em cidades vizinhas fora do território que pertence aos índios Xavantes (os quais, segundo me informaram moradores da região, sequer estão interessados em permanecer na terra dos agricultores e pecuaristas porque eles não têm o que fazer com elas) ou então tentam vendê-los, mas dada a situação de emergência, o preço do gado despencou e os pequenos produtores estão caindo no total prejuízo e perdendo o sustento de suas famílias.


A situação fica cada vez mais complicada, os protestos devem continuar e se intensificar, enquanto o assunto é tratado apenas pela imprensa local e a nacional sequer dá atenção ao assunto. “Enquanto isso, a Dilma está em Paris” disse um trabalhador que já previu cancelamento de vendas na loja porque não se sabe se o caminhão com o carregamento necessário vai chegar a Querência. Pois é, essa é a situação aqui, uma realidade que eu não conhecia e estou observando quase de perto, mas longe dos conflitos entre a polícia e os produtores das terras em desocupação. Apesar disso tudo, a vida aqui está tranquila, ainda não falta nada essencial e o carro de nosso amigo Diego é flex (coisa rara por aqui)  enquanto acabaram com o estoque de gasolina, tivemos álcool para dar um bom role para longe da região urbana.


Fomos parar no meio das plantações de soja das fazendas vizinhas, , em total escuridão e sem nenhuma lanterna (culpa da Vanessa!), apenas com a luz do farol do carro e as telas de nossos celulares. saímos para procurar as estrelas, mas o céu estava nublado (acho que amanhã promete muita chuva), "para que estrelas se temos nós", diz Vanessa. Não tínhamos estrelas no céu, mas encontramos muitas corujas no meio do caminho! Entretanto dada a falta de luz, era preciso chegar perto para fotografa-las. Sem sucesso, pois todas fugiram, a única foto que consegui foi usando minha lente zoom, mas sem flash e sem uma boa condição de luz ou lente apropriada, dá para ver apenas alguma coisa que lembra uma coruja em meio à escuridão. Vou mexer em todas essas fotos apenas quando estiver de volta à selva de pedra.


De lá fomos para perto de um lago, no limite da cidade, ainda na completa escuridão, e nunca ouvi tanto sapo junto (e olha que eu achei que nunca ouviria mais sapos do que em Barra do Una, na Jureia, em São Paulo), eles não coachavam, eles assobiavam, martelavam, serravam, e juntos faziam um som único, ininterrupto e absurdamente alto. Tentei filmar, mas a imagem era um grande preto e o som virou um enorme zunido! Começou a chover, entramos no carro e voltamos para a cidade. Chegamos à praça do centro da cidade e lá começamos a conversar, a tecer comentários sobre a fonte de extremo mau gosto que tem o charmoso apelido de “cocozão”, sim ela parece um grande amontoado de bosta, e ali se encena a paixão de cristo, que bonito! É, demos umas boas risadas. Acho que amanha vou finalmente ordenhar uma vaquinha! Até o próximo diário de bordo.

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

MT - Diário de Bordo: programa de índio

Eu comecei esse diário de bordo dentro do ônibus, no momento em que a questão de desocupação da terra indígena Marãiwatsédé, em Alto Boa Vista, no Mato Grosso, bloqueava as estradas da região. Eu estava passando por “Cascaiera”, como me informaram, quando tivemos que trocar de ônibus, atravessando a pé a estrada bloqueada por tratores e pneus em chamas para chegar ao outro ônibus que nos permitiria seguir viagem e terminei essa primeira parte agora, já sentada no conforto do quarto, prestes a dormir, baseando-me nas memórias do dia a partir do momento em que ônibus começou a andar e eu parei de escrever. Portanto, o tempo da enunciação e do enunciado ora coincidem, ora divergem.


Essa é uma daquelas viagens que você faz quando precisa deixar algo para trás, buscar algum tipo de interiorização e reencontrar alguma coisa perdida, talvez uma querida amiga que, em vez de morar, resolveu se esconder no meio do mato. Essa é a minha viagem para Querência, já passam de 24 horas de viagem e estou no terceiro ônibus que vai, finalmente, se nada mais se colocar entre a pequena cidade e este meio de transporte.


Acordei às 4 horas da manhã de ontem (10/12/12) para iniciar minha viagem. Fui de carona com o pai até a estação Anhangabaú da linha vermelha do metrô e de lá segui até a estação Tatuapé, onde peguei o ônibus versão pobre da Airport Service (R$ 4,20 ao invés de R$36 é uma economia e tanto, não?) e cheguei ao aeroporto de Guarulhos para então voar para Goiânia. O avião pousou em Ribeirão Preto e só depois de meia hora decolou novamente para chegar à capital de Goiás às 11 da manhã. Fui para a rodoviária, comprei passagem para Querência e então esperei até às 3 da tarde, hora em que sairia o ônibus. Seriam longas 16 horas de viagem pela frente.


Com tantas paradas que já perdi a conta, consegui algumas horas de sono com dois comprimidos de dramin, sendo que o primeiro foi por nausear com as legendas do filme que estava passando na televisão do busão (pra que legendas, e por que eu as estava lendo? O filme era dublado, afinal! E nem sei qual era o filme, passei tão mal que esqueci de continuar assistindo) e a outra foi proposital para forçar o sono. Teria sido mais fácil se não tivesse o som de uma TV desligada e um garoto não estivesse ouvindo “Eu quero Tchu, eu quero tchá” sem fone de ouvido em seu celular. Não aguentei e pedi gentilmente que o garoto colocasse fones de ouvido, a avó do menino não gostou, e eu disse-lhe que seria complicado viajar se eu tivesse que ligar as músicas do meu celular para competir com as dele. O som do celular foi desligado e não houve mais problemas. Quando havíamos sido avisados sobre um possível bloqueio de estrada na cidade de Ribeirão Cascalheira, próxima à região de Alto Boa Vista, essa mesma senhora havia se pronunciado indignada com o infeliz comentário: “Esses índio sempre causando problema! Atrapaiando a vida do trabaiadô... eles que vive às custa da gente e nóis que trabaia que se ferra... bando de folgado que não faz nada que que ganhá tudo de graça”. Aí eu entendi a situação.


Após longas horas de viagens e suas paradas, consegui dormir mais confortavelmente quando um sujeito que estava ao meu lado desceu em alguma das paradas, aí eu me estiquei e tomei conta dos dois bancos e o corredor. Já estava num sono gostoso quando o ônibus parou e o motorista nos avisou que teríamos que trocar de ônibus porque a estrada continuava bloqueada. Meio sonolenta, ainda não havia entendido onde estávamos, não lembrava do aviso sobre o possível bloqueio (o que dois dramins não fazem...) e perguntei onde estávamos. Uma mulher então me respondeu “é Cascaiera... bloquearam, vamos ter que descer... esses índio acha que pode tudo... se nóis mata eles somo preso, mas se eles mata a gente tudo bem.”


Mas foi quando desci que entendi que não eram os índios que bloqueavam a estrada, eles não usam tratores e pneus queimados para bloqueios, quem causava o transtorno eram proprietários rurais que protestavam contra o seu despejo. Eu não estava inteirada do que está acontecendo por aqui, e nem poderia, a mídia não dá muita atenção ao caso e só foi chegar hoje aos jornais e à televisão porque a situação começou a ficar bem crítica, mais estradas estão sendo bloqueadas (e eu espero que eu consiga voltar para Goiânia) e os protestos estão cada vez mais intensos. A Funai exige a terra indígena e pequenos proprietários rurais, que possuem escrituras de seus terrenos, estão sendo despejados sem qualquer indenização. E, ao que parece, os índios nem tem o que fazer com essas terras, eles não são agricultores. Pergunto-me por que apenas os pequenos produtores é que sofrem despejos. Índios querem as suas terras e o governo oferece soluções toscas que não satisfazem nenhum dos lados. O exército desce o cacete nos manifestantes, impede a aproximação da imprensa e isso é só a pontinha do iceberg.


Voltando à minha jornada, segui com minha mala, bolsa e mochila por entre os tratores até o ônibus que nos esperava do outro lado, bem mais velho e com bem menos lugares, não caberiam todos os passageiros ali. Depois de 20 minutos esperando lá dentro, alguns em pé e outros sentados, fomos avisados que aqueles que iriam para Querência seguiria em outro ônibus que havia acabado de chegar. Finalmente nesse "novo" ônibus, segui por mais uma hora e meia de viagem, dormindo, apenas acordando com alguns sacolejos e voltando a dormir logo em seguida.


Cheguei a Querência um tanto quebrada e a Vanessa já me esperava na rodoviária às 5:30 da manhã no horário local. Chovia muito e as ruas estavam cheias de lama, seria impossível caminhar com a minha mala pela rua. Esperamos um dos três táxis que existem na cidade e fomos enfim ao meu destino onde eu pudesse tomar banho e dormir decentemente.


A cidade é um ovinho, rodeada de fazendas, a área urbana é bem pequena e a internet é uma benção que não funciona nos dias de chuva. É uma delícia! Passei o dia fotografando, explorando tratores, colheitadeiras e afins, andando de bicicleta até, enfim, “cair na night” de Querência com a Vanessa e os amigos dela (gente boa!), que foi um X-salada em uma das poucas lanchonetes abertas. À noite tudo aqui é um breu, há pouca iluminação pública fora da avenida principal, o que nos presenteia com um belo céu estrelado. Pra não dizer que não acontece nada por aqui, foi só eu ir ao banheiro quando estávamos na lanchonete que um carro de polícia chegou à casa ao lado e de lá arrancou um cara a tapas e o levou preso. Cheguei a tempo de vê-lo sendo enfiado dentro da viatura.


Os próximos dias prometem ser repletos de passeios pacatos, colheita de fruta no pé, ordenha de vacas e visitas a picos onde as estrelas tomam conta de todo o visual. Toda a paz que eu preciso está ao meu redor e ela já começou a tomar conta de mim.


Informações sobre a desapropriação de Alto Boa Vista e conflitos na região aqui.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

A desmedida do ego

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"As pessoas deveriam aprender a respeitar e a ouvir umas às outras", dizia mendigo enquanto tecia o segundo grilo de palha. Esse senso é tão comum que acaba passando batido, ninguém o leva a sério de fato. Costumamos falar bonito, mostrar nossa preocupação com os rumos da humanidade, do planeta e da natureza. Mas preocupo-me realmente com o rumo da humanidade, porque as pessoas compadecem-se dos grande problemas mundiais: a fome; a miséria humana; a degradação; o desrespeito. Sensibilizam-se com a arte, deixam-se tocar pela música e veem nas crianças o futuro e a esperança... mas se esquecem do princípio mais básico: usar os mesmos valores para tratar daquele que está mais próximo. A proximidade tornou-se tão banal que pouco se dá atenção a ela e aos laços que com ela se criam; e se nossas ações vão machucar, magoar e passar por cima de quem está ao nosso lado, o ego nos impede de perceber e tornamo-nos inconsequentes. Esquecemo-nos, enfim, de ouvirmos e respeitarmos uns aos outros.
Você, que é tão cheio de valores, reflita-os sobre você mesmo além do espelho que encara, e cuidado com o ego que lhe cresce em desmedida.

sábado, 1 de dezembro de 2012

Brainstorm da desilusão

Sim, eu te amei. Dizem que Amor não acaba, é verdade, mas Amor não foi o que construímos, Amor era o que eu lhe tinha porque Amor é o que tenho a oferecer. Como já dizia Vinícius, antes de tudo ao meu Amor serei atento, e fui, e sou; atenta ao Amor que te dei e retribuiste com tuas mentiras e tua traição, Amor ferido, machucado, mas que ainda é meu, intenso e guardado; e a ti não sobrou mais nada que não a pena e o desprezo por aquilo revelastes ser.

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Sem título

O fim de relacionamento é como a morte, é preciso enterrar e viver o luto para conseguir seguir em frente. A dor de amar alguém sem ser correspondido é como respirar um ar cortante, sinto o desespero de tentar livrar-me da dor que me consome por dentro sem saber como tirá-la daqui. Para onde quer que eu olhe, pra onde quer que eu vá, essa dor acompanha, ela se resume em lágrimas que me deixam de nariz vermelho e entupido e com um gosto horrível na boca. Acho que esse é uma das coisas mais amargas que já experimentei na vida, é pior do que aquele gosto de cabo de guarda-chuva que fica na boca pela manhã. E o que intensifica mais ainda a dor da perda é a certeza de que é preciso esquecer sem ter ideia de como fazê-lo. Um dia acontece, e aí você percebe que passou. Mas até lá...


“Agora, que faço eu da vida sem você?
Você não me ensinou a te esquecer
Você só me ensinou a te querer
e te querendo eu vou tentando te encontrar
Vou me perdendo...”

terça-feira, 20 de novembro de 2012

O passado que não era seu - Parte 2

De mãos cortadas e pouco cicatrizadas, voltou à cama naquela noite. Acordou em meio àqueles mesmos corredores, algumas portas estavam abertas e outras tantas continuavam fechadas. Não fazia a minha ideia de por que entrou naquele mundo que surgira, parecia-lhe interessante, causava-lhe admiração, mas também dor, uma dor profunda que não era provocada pelos cortes na mão, estedia-se por dentro de seu corpo e não conseguia detectá-la. Encontrou a foto que faltava no porta-retrato, estava em uma gaveta de uma porta que se abrira recentemente. A porta deve ter sido aberta por acidente, pois aquela voz continuava a dizer “esse passado não pertence a você”. Nem aquele passado nem o presente que o alimentava. A voz a guiava pelos corredores, mostrava-lhe algumas paisagens que se guardavam atrás das portas, mas logo se fechava, ela já tinha visto o bastante e não tinha mais o direito de estar ali.


“Suas mãos ainda estão machucadas”, disse-lhe a voz. “Não deveria ter mexido no que não lhe dizia respeito, apenas o que mostro deve ser visto”. Ela não entendeu. “As minhas mãos não doem mais” respondeu-lhe. “Você me trouxe até aqui, deparei-me com as portas e quis explorá-las”, continuou. A voz nada disse e seu dono apareceu, olho-a nos olhos, suspirou e abraçou-a com ternura. As angústias dores haviam passado e, naquele momento, nada podia ser melhor do que estar ali, ainda que não fizesse ideia de onde estava. Todas as portas pareciam estar abertas, mas ele não a guiava através de nenhuma delas ela apenas podia contemplar a distância o que ele lhe oferecia. E então ele sumiu e todas as portas estavam fechadas novamente, não era possível sequer espreitá-las. A sensação boa provocada pelo abraço foi embora juntamente com o misterioso dono da voz. A dor e a angústia retornaram exatamente para onde estavam, com a mesma intensidade e, agregado, o medo. Medo de que aquele momento não se repetisse. Fechou os olhos, suspirou, e lá estava ele, sorrindo-lhe ternamente, ela o abraçou com força “Não vá embora de novo, fica...” e sentiu-se colhida mais uma vez, foi tomara por tranquilidade e paz temporárias. Ele foi embora e ela acordou na cama, com dor.

domingo, 11 de novembro de 2012

A realidade fictícia

Se existe algo que mostra que ficção é ficção, uma representação e não um retrato fiel da realidade, esse algo é a relação de causa e consequência presente em qualquer obra fictícia. É importante notar, inclusive, que mesmo um "retrato fiel" da realidade depende do olhar do observador, seja do cinegrafista, seja do fotógrafo. Essa relação de causa e consequência, quando obedecida, impede que haja pontos sem nó em uma história.


Na ficção, ninguém tem uma dor gratuita, se há a informação de que alguém está com dor de cabeça, provavelmente é sinal de algo mais grave (um câncer no cérebro talvez) ou então a personagem está com problemas pessoais/psicológicos/emocionais e, para justificar sua indisposição, dirá que está apenas com dor de cabeça. Nenhuma doença é aleatória, se ela aparece, é porque algo sério ligado à doença vai surgir em algum momento da história.


Na vida real, quando uma mulher diz que está enjoada, logo vem aquele comentário “Ih, está grávida!”, eu tenho certeza que isso acontece por causa dos filmes e das novelas. Afinal, não é difícil passar mal do estômago, comer algo que não caiu bem, enjoar e botar tudo pra fora. No entanto, em uma novela, por exemplo, se uma personagem feminina enjoa, certamente ela está grávida. Isso não tem correspondência necessária com a realidade (eu vomitei nesta semana, mas não estou grávida!).


A ficção não é realidade, como se costuma dizer de uma obra com uma verossimilhança incrível com o nosso mundo. Nossas vidas são repletas de dores de cabeça decorrentes de stress, má alimentação ou outros fatores, sem que isso provoque, necessariamente, uma hecatombe em nossa história. A ficção tem um propósito – seja ele meramente de entretenimento e/ou conscientização político-social e/ou qualquer outra intenção doutrinadora – direcionado, influenciado e manipulado pelo olhar de quem criou. Portanto, muito cuidado antes de olhar para um texto, um livro, uma crônica, um filme e dizer “nossa, é exatamente a realidade”. Não, não é.

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

O assassinato de Lewis Carroll

Era noite e chovia muito, o clima estava propício para reflexões profundas e depressivas. Ela então entrou num bar e sentou à mesa. Observando a chuva, pensava na vida que levava; nada parecia fazer sentido, é tudo tão efêmero, tão superficial! Tentava encontrar pontos relevantes que lhe indicassem algum caminho, mas tudo o que via era um dia nublado que bloqueava a passagem de qualquer raio de sol. Perdeu-se em seus devaneios. “A senhora vai pedir alguma coisa?” interrompeu-lhe os pensamentos o garçom, que estava preocupado em liberar a mesa para algum cliente pagante. Ela pediu então uma cerveja. Servida,  enrolou com o copo cheio enquanto perdia-se em suas reflexões. Sacou seu bloco de notas, uma caneta, esboçou palavras sem sentido, olhava para o papel e bufava impaciente esperando alguma inspiração. Não percebeu quando um homem de cabelo chanel, terno preto, de aspecto empoeirado, e gravata borboleta, que parecia ter saído diretamente do século XIX, sentou-se à sua frente.


“Olá, o que está escrevendo?”


“Perdão?”


“O que escreve aí? Me interesso pelos meus discursos metalinguísticos.”


Perplexa, pensou em levantar da mesa, quem era aquele maluco, afinal? Que ousadia dirigir-lhe a palavra, um louco, certamente. Mas aquele rosto lhe era muito familiar, onde o tinha visto? Balançou a cabeça, começou a recolher suas coisas e preparava-se para levantar.


“É, eu escrevi essa cena. Mas... fique mais um pouco, sua cerveja está intocada.”


“Mas quem é você afinal? O que você quer?


“Você sabe quem eu sou.”


 Olhou profundamente nos olhos dele, viu aquele cabelo, aquela vestimenta e então pensou estar fora de si.


“Lewis Carroll?”


“Se assim você me vê.”


“Não é possível.”


“Sou aquele que escreve os seus pesadelos.”


“Meu autor!”


“Seu senhor.”


“Meu autor é Lewis Carroll... isso explica muita coisa.”


“Você ainda não me respondeu o que estava anotando.”


“Bem, você é meu autor, então deveria saber.”


“Às vezes os personagens criam vida própria. Você também escreve, deveria saber disso."


“Se eu sou sua personagem, o que eu escrevo é o que você escreve sobre o que eu escrevo.”


“Não quando saem fora de controle. Vamos, mostre-me, quero saber.”


“Se os seus personagens fogem, recupere-os por conta própria.”


“É o que vim fazer.”


“Então boa sorte, não mostro minhas anotações para qualquer um.”


“Eu não sou qualquer um, você está perdida porque eu tive um bloqueio criativo.”


“Você está morto!”


“Estar vivo ou morto é apenas uma questão de perspectiva. Eu vivo no imaginário coletivo, eu estou aqui porque você me vê.”


“Já sei o que vou escrever nesse bloco.”


“Gosto quando meus personagens me dão ideias. Só não pense em atravessar um espelho, porque isso já está meio ultrapassado."


“Eu vou escrever o assassinato de Lewis Carroll.”


“Eu não fui assassinado.”


“Será.”


“Você não conseguiria me matar.”


“Veremos.”


Dizendo isso, pagou a cerveja que não tomou, levantou-se e rumou à estação de metrô. Lewis a seguiu.


“Você vai mesmo me acompanhar?” Disse-lhe, já esperando o trem na plataforma do metrô.


“Sim, mergulhar na história da personagem é a melhor forma de compreendê-la.”


“Se assim você deseja, vamos lá.”


Terminou de falar e empurrou seu autor no trilho, que foi atingido em cheio pelo trem.


“Já foi?” Disse. Entrou no vagão e sentou.


“Essa foi boa” disse-lhe Lewis sentando ao seu lado “Qual será a próxima?”


"No caminho a gente vê."

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Um quase brainstorm do verbo que se tornou intransitivo.

Ficar: verbo de ligação, transitivo direto ou indireto. Ficar em algum lugar, ficar triste, ficar feliz, ficar em casa, ficar enjoado, ficar sozinho, ficar de cara,  ficar com alguém; é a partir daí que ele se tornou também intransitivo, mais um significado para o significante. Foi nos anos 90 que essa coisa tomou forma. A ideia já existia, a ação já estava lá, mas ela não tinha um nome, não era oficial, não era um status. A coisa, por assim dizer, era uma massa amorfa, aquela ideia nebulosa de Hjelmslev, o pensamento não delimitado até o aparecimento da língua. Pois é, o conceito da coisa se uniu a uma imagem acústica e nasceu o signo. Agora a ideia nebulosa tem forma, tem nome,  ficar é um verbo intransitivo que designa uma ação específica, a ação de ficar com alguém e não estar com ninguém. Ficar transformou-se em um status socialmente incorporado e bem aceito; do verbo nasceu o substantivo ficante, e o mundo se preencheu de ficantes. Ficantes são amantes temporários, aquele tipo de coisa que era considerada cafajestagem e agora é uma opção, viver sem compromissos rumo à solidão. Era uma gíria entre os adolescentes, e a coisa cresceu e um signo se estabeleceu. Temos agora um bando de adultos agindo como adolescentes, com a vida emocional bagunçada e assumindo um relacionamento informal. Aliás, isso chega a ser um oximoro, pois a ideia de ficar é justamente não assumir coisa alguma. É consequência do turbulento século XX, as pessoas se esqueceram de quem são e a superficialidade da vida transpôs-se para os relacionamentos. E o século XXI prossegue com os efeitos colaterais de uma sociedade em ruínas, de pessoas intelectualmente sedentas e emocionalmente imaturas que sofrem sem nem saber por quê.

sábado, 8 de setembro de 2012

A porra do voto nulo

Eu já acreditei no voto nulo, foi uma crença desesperada, não em uma solução, mas em um protesto; inútil, percebo agora. Hoje voltei ao velho se ficar o bicho come e se correr o bicho pega, afinal, político na ativa é tudo igual. Não, minha gente, isso não é apenas um pensamento clichê ambientado no lugar comum daqueles que não pensam por conta própria, é preciso entrar e conviver diariamente dentro de uma esfera política para saber que quem tá dentro ou se envolve ou cai fora (de livre e espontânea ou espancada vontade) e ver morrer a ilusão de que somos nós os únicos responsáveis por aqueles que “nos representam” no governo.


Não é verdade, portanto, que basta “saber votar” para que ocorram mudanças efetivas, justamente porque o sistema eletivo é vicioso. Essa democracia mascarada na qual vivemos oferece a ilusão de que é possível mudar através do voto, entretanto, não é; afinal, a famosa frase de Rousseau permanece mais atual do que nunca, “uma sociedade só é democrática quando ninguém for tão rico que possa comprar alguém e ninguém seja tão pobre que tenha de se vender a alguém”. Concluí, portanto, ou melhor, concordei, debatendo sobre o delicado assunto, que votar é um ato estratégico muito mais do que democrático. É votar naquele que vai impedir determinado candidato de assumir o cargo. Isso é ainda mais perceptível num segundo turno, quando os dois candidatos se mostram péssimas opções e fica ainda mais evidente que, seja quem for que ganhe a eleição, nós perdemos.


É, concordo, votar nulo não é solução, bem como votar em alguém também não é. Mudanças só ocorrem quando a sociedade não tem mais nada a perder, e então pode-se começar alguma revolução. Enquanto houver um sistema vicioso, gente para comprar e gente para se vender, só podemos contar com pequenas conquistas, pequenas mudanças localizadas, mas com a consciência de que é preciso muito mais do que o atual sistema eleitoral para haja uma real perspectiva de mudança.


É um tanto hipócrita, no entanto, ver quem defendia o voto nulo com unhas e dentes compartilhando agora no Facebook agora imagens ridicularizando aqueles que acreditam nele; querendo ou não, voto nulo é uma opção para quem não acredita em candidato algum, para quem simplesmente sabe que  eleição não muda o sistema. As pessoas esquecem o passado, ou compartilham ideias prontas porque não sabem pensar por si. Hoje eu não voto nulo simplesmente porque ele só deixa o sistema eleitoral pior do que já é, mas não nego que já acreditei nele, fez parte do meu processo, da minha constante busca pela conscientização política. Mas brasileiro tem mania de negar e apagar o próprio passado, percebe-se isso ao longo da história.

sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Por que escrever? (Dia do blog)

Hoje é dia do blog. Quantos blogs existem por aí? Milhares? Milhões? Uma infinidade deles expressando coisas úteis, fúteis, inúteis, agradáveis, desagradáveis, com ideias, vazios, engraçados, deprimentes, tristes, alegres, desenhados, escritos, poéticos, prosaicos. Palavras; significantes e significados. O meu é mais um, eu sou mais uma. Por que tantos escrevem? E por que eu escrevo? Talvez eu pudesse responder com propriedade ao menos a segunda pergunta, mas nem para esta posso desenvolver uma resposta satisfatoriamente clara.

O mundo virtual acabou abafando o antigo diário – tão íntimo, tão reservado – e escancarou-o ao mundo, milhares de ideias, pensamentos, divagações são jogadas na rede e compartilhadas para quem quiser ler, ver ou ouvir. Se antes era preciso conseguir um livro publicado ou arrumar espaço no jornal para se expor literariamente, hoje basta ter uma ideia na cabeça e acesso à internet.

Eu não sei por que escrevo, por que compartilho minhas ideias mesmo sabendo que poucos lerão, e destes, um número menor ainda vai absorver alguma coisa. A tecnologia, no entanto, permitiu-me tirar meus pensamentos de dentro da minha cabeça, ou alguns deles, passíveis de registro, e jogá-los ao vento, para alguém pegar ou simplesmente para estar à disposição de quem quiser fazê-lo, mesmo que ninguém o faça; sejam minhas angústias, sejam as minhas reflexões, sejam minhas opiniões, meus contos ou crônicas, eles estarão por aí. Acho que percebi que é egoísmo guardar minhas impressões só para mim, bem como é inconveniente forçá-las a quem não quer recebê-las. Acredito que é por isso que escrevo e publico, as ideias que consigo (e quero) registrar são servidas para a degustação daquele que quiser provar.

Já dizia Bernardo Soares, heterônimo de Fernando Pessoa, em seu Livro do Desassossego: “Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir”. E assim escrevo; desabafando, opinando, criando, construindo e desconstruindo. Seja bem vindo ao meu mundo em comunhão com nossos mundos (unsere Welten) – ao entrar nele, o fará por sua conta e risco – puxe a poltrona, deixe o encosto na posição que lhe aprouver, afrouxe o cinto, sirva-se do chá, dos biscoitos e boa viagem.

Art Poétique (Fragmento II)

Diário de viagem sem viagem
ou carta sem nenhum destinatário:
palavras que, no máximo, interagem
com outras palavras do dicionário.
Um escrever que é verbo intransitivo
que se conjuga numa só pessoa.
Um texto reduzido a substantivo
menos que abstrato: se nem mesmo soa,

como haveria de querer dizer
alguma coisa que valesse o vão
e duro esforço de fazer sentido?

Por outro lado, a coisa dá prazer.
Dá uma formidável sensação
(mesmo que falsa) de estar sendo ouvido.

(Paulo Henriques Britto)

Feliz dia do blog. Já começou o seu?

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

A tristeza é parte de nós

A tristeza é parte de nós, da nossa natureza mítica, trágica. É através dela que somos capazes de reconhecer o que é felicidade. E quando a dor aflora, ela nos acompanha por determinado tempo até que, sozinha, ela se dissolva e se dilua, deixando apenas uma lembrança de algo longínquo. Até lá, o sofrimento persiste, faz parte do dia a dia e acabamos aprendendo a lidar com ele. Um sorriso não significa, necessariamente, serenidade ou alegria, ele pode representar a necessidade de continuar, sem se entregar por inteiro à tristeza que nos consome por dentro. E quando, de repente, as lágrimas voltam a cair, não é mais uma recaída, é apenas a válvula de escape para a pressão interna causada pela dor crônica. Não há tempo certo para cessar as dores, acalmar as angústias, não há palavras certas que resolvam; tampouco as frases e discursos do senso comum ajudam, pelo contrário, machucam.


Quando minhas lágrimas vierem, deixem-nas em paz; preciso libertá-las. Ainda que essa dor não esteja cessando com a rapidez que você imagina ou acredita que deveria acontecer, não tente me mostrar a realidade, fazer-me cair na real com duras palavras, mesmo que você se importe comigo e que me ver sofrer doa no seu coração. Agradeço a preocupação, o carinho, mas tenho conhecimento prático dessa dor e sei que não dura para sempre, e mesmo assim preciso mergulhar nela sem reservas. Não me diga que não vale a pena, que é preciso seguir em frente e esquecer, eu sei que isso é verdade, mas eu não quero ouvir, não agora, não consigo ouvir sem que isso seja um espinho cravando fundo na dor. Simplesmente esteja aí, me ofereça seus ombros, seu abraço, seus ouvidos e, se for me oferecer palavras, que sejam para tentar arrancar algumas risadas do meu pesado semblante.


A esperança, normalmente ilusória, é, muitas vezes, necessária enquanto a dor persiste, como um analgésico para aliviar um tormento constante; ela, como dizem, é a última que morre, mas ela morre, e a tentativa de forçar a sua morte apenas cutuca uma ferida aberta. Um dia ela morrerá naturalmente juntamente com o sentimento que a alimenta; por enquanto ela está em coma, sobrevivendo de lembranças e até o momento que ela vá embora sem que seja preciso fazer a eutanásia. A visão externa é sempre mais clara e fácil do que aquela de quem está vivenciando a dor, mas não é possível forçar a visão de ninguém. Apenas o tempo pode agir, não dê conselhos os quais você mesmo não seria capaz de seguir.


Eu sei, eu já vivi, eu me lembro do que já sofri, e racionalmente sei que a gente sempre supera. Quem não tem memória é o coração, ele parece ignorar a razão e os fatos. Mas, um dia, quando este estiver novamente inteiro e a saudade não for uma faca afiada e cortante, me lembrarei de tudo e serei capaz de narrar mais essa etapa da minha história referindo-me a mim em terceira pessoa, com a visão de quem sofreu, superou e, mais uma vez, aprendeu. Quando esse dia chegar, poderei me libertar da máscara que uso e da personagem que interpreto diariamente para satisfazer a necessidade que a sociedade tem de receber o meu sorriso.

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

A ti que quase esqueci

Há alguns anos eu te observava chegar. Teu carisma, teu jeito bem estranho, teu sorriso, de alguma forma, faziam meu coração descompassar. E então o descompasso foi passando, e o ritmo se acalmando. Mas eu continuava a te observar, a sentir sua ausência, sua presença, até que caístes no mundo para então não mais voltar. Não fazes parte da minha vida, não és nada meu, e eu continuava a pensar na estranha ligação ainda me fazia te acompanhar em pensamento. Não era paixão, nunca foi; não era amor, nunca será. Por muito tempo acabei te esquecendo, e volta e meia teu nome saltava à minha mente, e nada mais significava, mas ainda havia algo, havia alguma ideia que pairava no ar. Fostes a primeira pessoa que não entrou na minha vida e, assim mesmo, tanto me ensinastes sem sabê-lo. E, sem desejo de te ver, agradeço tua presença mínima, os dias em que olhares cruzaram e me fizeram compreender parte da essência humana. Há anos que não te vejo, do teu rosto eu quase esqueci, mas do teu abraço, não esqueço cada toque. Desisti de entender, de buscar razões e me perguntar se eu ainda iria te reencontrar. Importa apenas que és, e sempre será, aquele estranho andarilho que me fez parte sem entrar.

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Um dia de chuva

Um dia chuvoso, uma livraria fechada e dois sorrisos iniciantes. Um beijo no rosto seguido de um tímido abraço. Dois guarda-chuvas caminham pela rua a procura de cadeiras. Eles se fecham e os cotovelos se apóiam na mesa, os olhos se encontram e uma afinidade se estreita. As bocas produzem sons, as mãos seguram copos, os olhos se comunicam e os pensamentos se conectam na fluidez natural da noite. Os cotovelos saem da mesa, os guarda-chuvas se abrem e andam lado a lado prolongando a agradável conversa ao longo do caminho até a despedida, outro beijo no rosto, mais um abraço e a agradável sensação de uma amizade nascente. Alguns dias, algumas semanas e um novo encontro. Um cruzar de olhares, uma conexão de ideias e um encantamento. O desejo de outro encontro, dias de expectativas e mais conversas. Outro dia, outro encontro, uma deliciosa troca de palavras e um beijo na boca, um prolongado e quente beijo. Mais encontros, toque de mãos e entrelaçar de dedos. Mais beijos, mais conversas e mais desejos. Uma hesitação, um medo e uma sucessão de medos. As mãos se separam, os olhares se desviam, a saudade aperta e as lágrimas se libertam.

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Valores (não tão) humanos


Muitos que vivem merecem morrer. E alguns, que merecem viver, morrem. Você pode dar-lhes a vida? Então, não seja tão ávido para condenar à morte em nome da justiça[...]


(Gandalf em O Senhor dos Anéis) J. R. R . Tolkien



Há alguns dias li a notícia sobre a morte de uma pessoa a qual não me era desconhecida. Não se pode dizer que éramos amigos, mas conversávamos, vez outra, rapidamente, conversávamos. Ora falando bobagens, ora resolvendo assuntos de trabalho e, às vezes, até me oferecia carona para casa. Nada demais, apenas mais uma daquelas pessoas do expediente de trabalho que faziam parte do dia a dia; não me despertou grandes afeições, mas, tampouco, merecia meu desprezo. Não me interessava saber os meios nos quais ele estava envolvido. Era mais um vendido? Outro corrupto? talvez, mas ainda assim, uma pessoa a qual eu via sorrir e a ele eu retribuía o sorriso e o bom dia de cada dia. Para alguns, apenas mais uma notícia de jornal, para outros, mais um que já foi tarde. Para mim, a sensação, incômoda, foi um pouco mais humana do que isso.


Houve um assassinato, uma execução. Queima de arquivo? Talvez. Não há provas. Mas não é preciso ser muito esperto para saber que ele estava envolvido com algo que não deveria estar e pagou um preço muito alto por isso, um tiro que o derrubou e outro que terminou o serviço quando ele, já quase sem vida, jazia no chão. Uma morte merecida? Eu não ousaria julgar, vivemos no limite entre o bem e o mal e, muitas vezes, esses dois opostos se misturam, convivem dentro das coerções sociais. Quem já assistiu Crash – No Limite, é capaz de entender do que estou falando.


O mundo não é dicotômico, tampouco as pessoas o são. E aquela, que agora jaz embaixo da terra, não era uma exceção. Se por um lado havia um homem envolvido em questões políticas, corruptas, que vendeu sua alma, por outro lado havia outro homem coexistindo com aquele; um marido, pai de família, amigo, bebedor de cerveja. Era, enfim, um ser humano do qual não se conhece as razões que o levou a envolver-se com o que não devia, e que deixou para trás aqueles aos quais ele era caro.


Não, sua condição de pai, marido e amigo não o eximia de qualquer um de seus possíveis desvios de conduta. Mas não está em minhas mãos, nem na de ninguém, julgar o destino da vida ou morte de um homem o qual não era apenas mais um que se estacava exclusivamente no pólo negativo da dicotomia bem versus mal. Sua vida valia mais que um silêncio forçado. Se ele tinha que pagar por alguma coisa, que não fosse, necessariamente, com a própria vida. E, se ele buscou a própria morte, resta-nos lamentar humanamente a sua escolha, e não vibrar com ela.


Mas era mais uma notícia de jornal, a ninguém interessa o que ele talvez soubesse, menos interessante ainda é a investigação para descobrir quem de fato queria vê-lo silenciado. Afinal, é mais um que já foi tarde, o resto não conta. Enquanto outros continuarão a ser silenciados, as nossas vidas seguem seu rumo em um completo silêncio resignado.


Descanse em paz, Orlando.

domingo, 19 de agosto de 2012

A vida através dos filmes

Já dizia Oscar Wilde que a "a vida imita a arte muito mais do que a arte imita a vida". É verdade, até certo ponto. É fácil se identificar com personagens, cenas de filmes, ou imaginar-se nelas. A vida, inclusive, tem trilha sonora. Sofremos, imaginamos situações como nos filmes. A diferença é que, no filme, muitas vezes o final feliz é o esperado, ao passo que, na vida real, podemos até ter um "final" feliz para determinada história, mas ele não está escrito, e provavelmente não será aquele que desejamos no momento para sanar a dor que nos envolve.


Por muito tempo esperei ganhar as farinhas de "Mais estranho que a ficção", tão doces, tão significativas, tão cheias de "Eu quero você". Eu esperei, mas não ganhei, porque a vida não é, exatamente, como um filme. No entanto, há um quê deles em nossas vidas.







Ah... quem dera saber que, como em "Alguém tem que ceder", após o pranto de Erica Barry (Eu? Ah, não. Diane Keaton) , o seu amor se tornaria concreto, o almejado final feliz, afinal, aconteceria. É impossível enxergar, no momento da dor, qualquer outro "final" que não aquele que desejamos. Nisso, a vida diferencia-se dos filmes. Tudo que sei é que, como ela, eu deixei alguém entrar, e tive aquele momento; agora tenho as lágrimas.







Eu tentaria mudar meu passado, se a vida fosse como em "Efeito Borboleta", e talvez eu descobrisse que mudar algo poderia atrapalhar, e muito, o presente e o futuro. Mas eu não saberia disso, e arriscaria. Eu tentaria apagar a causa da minha dor, mas a vida não é um filme. Eu não posso apagar o dia em que conheci alguém, tampouco os momentos mais perfeitos que vieram logo após. Talvez nem fosse justo apagar, por mais dor que ele me cause, acabo apegada a esse sentimento porque, de alguma forma, ele ainda me dá esperança, esperança de que algo ainda não morreu, até que, naturalmente, ela morra juntamente com o sentimento que a alimenta.







Se eu daria à minha cabeça um "Brilho eterno de uma mente sem lembranças"? Talvez... lembranças... quase impossível viver com elas, impossível viver sem elas. São elas que proporcionam a saudade... sentimento tão lindo, tão poético, tão cruel.







A vida imita a arte, a vida imita filmes, ou parte deles, e compõe um quebra cabeça único. E agora, tudo o que tenho é o desejo de não esquecer.







"– Acabou. Vou voltar para casa.


– Não! Você não pode… Pare! Não vá embora, por favor! Ninguém nunca ficou comigo por tanto tempo. E se você for… se você for embora… com você eu me lembro melhor das coisas, é verdade! Ouça! P. Sherman, 42… 42... eu me lembro, eu juro, está aqui! Eu sei! Eu sei porque, porque… porque quando te vejo, eu posso sentir. E quando olho para você eu… me sinto em casa. Por favor, não quero perder tudo isso, eu não quero esquecer.


– Me desculpe, Dory, mas eu quero."

Mais uma carta para você

Olá, há algum tempo não lhe escrevo. Há meses que eu não me preocupava em quando você viria, eu sabia que em algum lugar você estava, então bastaria deixar o tempo encontrar a oportunidade de unir nossos caminhos. Ocorre que deixei mesmo de escrever porque julguei tê-lo encontrado. Eu não tive dúvidas que era você e deixei-o entrar. Ele entrou e ocupou lugar destinado a você, me entreguei a ele sem reservas, e agora escrevo para pedir que não apareça, não agora, pois se você aparecer, não saberei reconhecer, não há espaço para você aqui dentro, meu coração não está livre. Por favor, não venha, não enquanto eu não liberar o espaço, e eu não sei quando isso vai ocorrer. Poderá levar meses? Anos? Eu não sei, para falar a verdade, no momento não estou nenhum pouco preocupada com a sua existência, simplesmente porque eu quero, eu desejo que ele seja você.


Sabe, ele chegou devagarinho, não me despertou uma paixão fulminante, e então conquistou meu carinho, meu afeto, aproximou-se pelas ideias, encantou-me pelo olhar, e então tocou meu coração. Por um momento te reconheci e, sem medo, deixei-o entrar, era você afinal. E então ele foi embora. Por que você demorou tanto? Por que deixou que eu me enganasse tanto e alguém ocupasse seu lugar aqui dentro? Eu não faço ideia de como tira-lo daqui, não suporto essa dor e não consigo me livrar dela. Eu não sinto sua falta, sinto a falta dele. Isso tudo é culpa sua, se tivesse aparecido no lugar dele eu não estaria sentindo tanta dor, e dói tanto que nem os livros, meu maior escape, conseguem me fazer esquecê-la por um único momento.  Eu trocaria, se pudesse, essa mazela pelas piores cólicas que já tive, pelas piores enxaquecas, por uma dor de ouvido insuportável, por um soco no estômago ou por um osso quebrado. Mas eu não posso, essa dor é minha e só eu posso conviver com ela. Então fique longe de mim, não apareça, eu não quero saber de você, não agora, não hoje.


Sem mais. Até, talvez, um dia.

sábado, 18 de agosto de 2012

O diálogo entre o Corpo, a Cabeça e o Coração

Dessa vez o Coração quebrou em diversas partes, sua dor era tanta que o Corpo e a Cabeça se calaram diante dele por alguns instantes. Ele chorava, soluçava, não conseguia ver adiante, tudo parecia acabado. Nem a Cabeça ousara intervir, até ela havia se enganado. O Corpo, que nunca havia sentido tanta sintonia antes, também não entendia, lamentava a ausência do que lhe causara tanto prazer. Todos estavam de acordo. Dessa vez, portanto, não haveria erro. No entanto, todos foram surpreendidos, todos ficaram arrasados.


– Coitado do Coração – dizia a Cabeça – normalmente ele é burro, mas dessa vez nem o culpo. Eu que não sou sentimental consegui me envolver completamente. Nunca antes tínhamos agido em pleno acordo.


– E eu que estava quieto, não fui o carro chefe da ação como costumava ser (o que, aliás, nos causava sérios problemas) – prosseguiu o Corpo – Apenas observei de longe, vi você, Cabeça, tão envolvida intelectualmente que, quando o Coração acordou daquele longo sono e a passou bater cada vez com mais força, comecei a me agitar.


– Ta doendo pra caralho! Alguém acaba com isso, por favor! Eu não aguento mais essa dor! Preciso de paz – interrompeu o Coração, soluçando.


– Calma, Coração, isso passa, você já se quebrou assim antes. – respondeu solidária o Cabeça.


– Passa? Eu não tenho memória! Não lembro mais como era sentir tanta dor, não pensei que pudesse doer tanto, ta doendo, e nada faz passar…


– É porque você não pensa, mas eu lembro, Coração, e como lembro. Sofri para tirar você daquela situação, naquela época eu estava meio fraca, não me alimentava bem, por isso foi tão difícil. Mas foi a única situação que te vi desse jeito, tão machucado. Eu não tinha forças para te resgatar.  Mas, ai, eu te entendo... quando outra vez vou poder ter conversas e discussões tão agradáveis com alguém que ao mesmo tempo se conecte com vocês dois? Mas hoje eu sei, hoje eu sou forte, e vou nos guiar para fora dessa escuridão. Eu vou tirar você dessa, Coração…


– Vocês não fazem ideia da falta que sinto daquela pele… – disse o Corpo.


– Corpo, você não está ajudando. Esquece que o Coração se entregava completamente quando você entrava em ação?


– Eu sinto falta de tudo – falou o Coração – daqueles olhar, daquele abraço, daquele sorriso… ah, o olhar tão sincero… eu me enganei? Não! Não posso ter me enganado tanto, não desse jeito, não depois do que vi e senti…


– Todos nós nos enganamos – respondeu o Corpo – mas é claro que a culpa principal é de vocês. Ficaram com tanto mimimi de sentimentalismo e excitação por compatibilidade de gênios que até eu me empolguei. (E acho que nunca me empolguei tanto na vida!)


– Ah, cale-se, Corpo. Ninguém é mais ou menos culpado aqui, nós estávamos em acordo, ninguém pensou que isso poderia acontecer (nem eu, que sou o único que penso nessa família!) – retrucou a Cabeça.


– Parem vocês dois! Eu só quero paz, só quero parar de sentir essa dor. Eu não me enganei! Eu sei que não.


– Coração, eu sei que você está sofrendo, mas, entenda… acabou. Você vai ter que superar isso.


– Não, não acabou, não ainda, eu não acredito nisso! Eu não me enganei, eu sei o que eu vi…


– Eu sei que continuo cheio de desejo aqui, é tudo que sei. – disse o Corpo.


– Eu sou o único que pensa aqui, eu sei que uma hora isso vai acabar, e um dia estaremos prontos pra outra, de novo.


– Você não sabe de nada, Cabeça, você não sente, e a razão nem sempre é a dona da verdade.


– Tudo bem, Coração, você tem que passar por isso, não adianta eu falar. Com o tempo você vai se recompor e aceitar a realidade.


– Cala a boca! Eu não quero ouvir, eu vou continuar esperando enquanto eu tiver forças!


– Com licença, vocês dois, eu vou dormir um pouco, ok? Assim eu descanso, a Cabeça desliga e o Coração para de sentir. Até mais.


Algumas horas depois…


– Mas o quê..? Oh não… Cabeça, por que você me acordou? Eu ainda estou exausto!


– Não consigo parar de pensar, ainda espero conseguir entender… Coração, como você está?


– Ele não está respondendo – disse o Corpo.


– Eu… me deixem, não tenho forças – respondeu o Coração.


– Sem sua energia eu fico fraco, Coração, eu preciso que você seja forte… – lamentou o Corpo.


– Só me deixe aqui quieto…


Pela primeira vez a Cabeça não assumia total controle. Desolada diante da situação, restou-lhe apenas dizer:


– Bom, tudo o que me resta agora é cuidar de vocês dois…

domingo, 12 de agosto de 2012

O fotógrafo e a câmera

Certa vez li um texto muito divertido intitulado “Como irritar um fotógrafo”. Dentre várias opções da lista, que vão de pedir ao fotógrafo para ver como a foto ficou, falar para ele tirar outra e elogiar a câmera ao invés da capacidade do fotógrafo, esta última é a mais irritante. Não há nada que desabone mais o trabalho de alguém do que atribuir a sua capacidade ao equipamento. Entretanto, ferindo o brio de muitos fotógrafos, não dá para negar que a câmera seja importante. Para esclarecer melhor a situação, um fotógrafo estará mais capacitado com uma compacta em mãos do que um Zé Rodela que esteja usando uma Canon 5D –  ou uma 1D (que sonho!) – mas não dá para negar que um excelente fotógrafo terá um leque muito maior possibilidades para explorar sua criatividade se puder usar um equipamento "fuderoso" como esses.




[caption id="attachment_1652" align="aligncenter" width="360"] Imagem retirada do Facebook.[/caption]

É claro que o bom profissional tira leite de pedra com um equipamento precário, mas ele se assim o faz, o que não seria capaz de fazer com o melhor equipamento em mãos? Eu sempre pergunto a um fotógrafo que equipamento ele usou, não por desvalorizar sua capacidade criativa, mas para saber quais os recursos ele tinha disponíveis no momento daquela foto. Ontem saí para fotografar, minha máquina está obsoleta, mas, claro, sou capaz de fazer ótimas fotos com ela. No entanto eu sentia falta de uma full frame, lentes grande-angulares, ou zooms capazes de abrir muito o diafragma; eu vislumbrava imagens para as quais minha máquina não tinha os recursos necessários. Se eu preciso aumentar o ISO para 3200 com minha reles Canon Rebel XS (de CCD porque já passou das 200 mil fotos), não posso, ela é limitada a míseros 1600. E eu vi uma garota aprendendo a fotografar com uma Canon 5D Mark III, último lançamento da linha 5D. Dá para não pensar no que poderia ser feito com aquilo se souber fazê-lo? (Mas, é sempre bom lembrar, somente quem sabe fotografar tem o direito de perguntar qual o equipamento usado!)


Os fotógrafos orgulhosos que me desculpem, mas se é para falar de capacidade independente do equipamento, quem merece as honras são aqueles que fotografavam com analógicas. Fotografar com analógica é arte, trabalhar no laboratório P&B é poético, já fotografia digital atende à atual rapidez do mercado. Alguém consegue conceber o que era fotografar um show de rock tendo que trocar inúmeras bobinas de filme fotográfico? Para eles eu tiro meu chapéu.


Resumo da ópera: de nada adianta uma Ferrari nas mãos de quem não sabe pilotar, mas não dá para colocar em pé de igualdade de competição dois excelentes pilotos os quais estejam um com uma Ferrari e o outro com um Fiat 57.

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

O Facebook e o Lugar Comum

Senso comum é todo e qualquer conhecimento, com origem em práticas ou experiências sociais, continuamente propagado, sendo aceito pela maioria e questionado por poucos. Sabe-se porque se sabe, porque, oras, todo mundo sabe. É confortável acomodar-se nesse lugar comum, questionar dá um pouco mais de trabalho. O mais intrigante é que até algo que um dia foi questionamento a um senso comum, pode acabar virando outro, instaurando-se nesse lugar de sensos tão comumente aceitos. Isso pode se dar, inclusive, pela simples e pura análise de fatos e posterior conclusão por silogismo.


Na questão política, é senso comum apontar o dedo para a corrupção, dizer que político é tudo igual e reclamar do ônus que isso causa à população. Há, no entanto, o questionamento deste comportamento, dizendo que não se tem o direito de reclamar, uma vez que é de responsabilidade popular a escolha de seus representantes através do voto. Silogisticamente, temos: a população escolhe o seu governante, dessa forma, aquele que conquistou o poder só o fez porque os eleitores permitiram, logo a culpa é da população e não dos políticos.  Entretanto, essa conclusão puramente lógica, baseada em duas premissas, também se tornou mais um conhecimento amplamente propagado e pouco questionado. Para um onda de reclamações sem qualquer ação ou reação existe uma oposição simples e sem aprofundamento sobre o assunto. É fácil observar esse comportamento no Facebook; as redes sociais facilitaram, e muito, a propagação em massa de ideias prontas e encaixadas no lugar comum.


Sair do desse básico dá um pouco de trabalho, ele é a porta de mais fácil acesso à zona de conforto. O ato de abrir outras portas exige um esforço de análise, que pede mais do que apenas um clique no botão “compartilhar”. O primeiro passo seria, talvez, além de usar o simples “compartilhar”, passar também a comentar, ou compartilhar comentando, ou, ainda, simplesmente ter um pouco mais de critério nos compartilhamentos. O ato de comentar não serve para simplesmente concordar ou discordar, mas para expor alguma ideia, discutir, complementar ou divergir daquilo que foi exposto. Essa poderia ser a forma mais construtiva de troca e interação no mundo virtual, fazendo jus à poderosa ferramenta que é o Facebook, tão mal visto por alguns devido ao seu mau uso por outros.


No caso do exemplo citado – no qual podemos observar as diversas imagens criadas e propagadas na rede social para divulgar uma mesma ideia não muito profunda sobre o comportamento da população em relação à corrupção, em oposição àquelas que apontam para este problema – não é senso comum questionar se o sistema eletivo é realmente válido e funcional para resolver o problema da corrupção. O cidadão que votou em outro candidato que não o que está no poder, poderia então reclamar deste? Não se leva consideração o fato de que, muito mais do que o ato de votar, o comportamento social é, em grande parte, responsável pelo problema, afinal, os políticos saem dessa sociedade e são, portanto, um reflexo dela.


A acomodação no lugar comum ocorre não somente em relação às questões políticas, mas em relação a qualquer informação compartilhada em massa: conteúdos sem fontes checadas, frases ou textos com falsas atribuições de autor, entre tantas outras formas de usar um dedo para clicar sem precisar pensar a respeito de qualquer coisa.


Diz-se que é preciso ter “bom senso” para usar o Facebook, mas a expressão “bom senso” dá margem a diversas interpretações capazes de gerar uma tese para iniciação científica, ou quem sabe mestrado ou doutorado. Portanto, devido à falta de uma definição específica para “bom senso”, vale então dizer que, para usar o Facebook em sua máxima eficiência, não é preciso ter apenas bom senso, é preciso sair do lugar comum, é preciso o senso de discernimento.

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Diálogo da Olimpíada: A Vergonha

[linha de chegada da natação]


[fala o narrador]


– É bronze! Brasil é bronze!


[começam os lamentos]


– Aff, Brasil, vai pra casa que você não dá mais nada.


– Mais um Bronze?


– É, uma droga.


– Quantas medalhas de ouro até agora?


– Uma só!


– Só uma? O Brasil tem que sair de campo para parar de passar vexame.


– Não é? Uma vergonha, uma vergonha...


Realmente, é uma vergonha, Brasil, as asneiras que o seu povo fala. Uma vergonha um país que não investe na educação e tampouco incentiva o esporte, deixando os atletas à mercê de sua própria vontade e esforço e, quando chegam as Olimpíadas, todos querem ver medalhas. Medalhas! Em honra a quê? Para o orgulho de quem? Daqueles que querem dizer que é brasileiro e o seu país tem mais conquistas? E que também esquecem, ou sequer sabem, que o país que conquista muito ouro nas olimpíadas apóia os seus atletas?


Não, cada vitória alcaçada não é do Brasil, não é sua, brasileiro que está sentado esperando resultados. A conquista de cada partida, de cada medalha, de bronze, prata, ou ouro, é do atleta que chegou até lá sozinho, sem o seu apoio, sem o apoio de um país inteiro. É uma vergonha, Brasil, que só se lembra desses atletas nos anos olímpicos e que, passada essa euforia, caem no esquecimento. Parabéns, atletas brasileiros, por cada conquista, parabéns por estarem lá. Vocês são os verdadeiros campeões, não o Brasil.

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Oi, tudo bem?

“Não”, poderia ser a resposta. Mas que estranho seria dizer a um estranho que não está tudo bem, não é? Certamente eu não gostaria de ouvir os problemas de quem não conheço ou não tenho intimidade, e a recíproca normalmente é verdadeira (desconsiderando os curiosos pela vida alheia). Entretanto a sociedade tem esse insuportável hábito de perguntar: “Oi, tudo bem?”; “Olá, como vai?” E lá vem a resposta padrão: “Bem, e você?”; “Olá, vou bem, obrigado(a).” Não sei quem foi o infeliz que começou com isso, mas se ele estivesse vivo, deveria ser punido com requintes de crueldade.


Esse cumprimento diário não poderia ser reduzido apenas à primeira interjeição? Eu me sinto a pessoa mais mentirosa do mundo quando alguém me pergunta sobre o meu estado de espírito nos dias em que ele não está vivendo sua plenitude. Não que estejam verdadeiramente interessados no meu bem estar, na verdade, ninguém liga de fato, a pergunta é mera formalidade, tal qual é a resposta. Mas quando nada está bem e eu respondo “tudo bem”, logo em seguida, mentalmente, eu respondo: “não, não está tudo bem, está tudo péssimo.” É inevitável, eu preciso ser sincera, nem que seja em silêncio. Se você for meu amigo, ao me fazer essa pergunta, ouvirá um sonoro não. Posso até não falar o que está acontecendo, mas você receberá toda a minha sinceridade.


Às vezes recebo ligações de bancos que estão a oferecer algum serviço e, como uma íntima amiga, a atendente diz: “Olá, Roberta, tudo bem com a senhora?” Aí eu respondo “não.” Bom, mas nesse caso eu sempre respondo não, mesmo que no exato momento da ligação eu esteja vendo passarinhos verdes voando sobre o arco-iris e vislumbrando o pote de ouro ao final dele. Sabe como é, desestabilizar os atendentes dá um certo prazer sádico.


Mas, para não sentir desconforto por mentir, a melhor resposta pode ser “vou indo”. Acho que não existe melhor expressão para definir um estado de espírito desestruturado sem chocar quem a recebe. Você está indo, é verdade, se não estivesse, estaria morto. Indo pra onde eu não sei, pode estar indo para o buraco, para o abismo, rumo ao desconhecido ou, quem sabe, ao paraíso, mas é sempre algum lugar, não é? E o melhor é que, geralmente, aquele que perguntou não se aprofundará no assunto, e se tentar fazê-lo, basta desconversar com uma risadinha sem graça.


E aí? Tudo bem com você? Eu vou indo.

terça-feira, 31 de julho de 2012

Diálogo do Bandejão: A Invasão

[dois sentam à mesa]
– Nada como um dia após o outro, né?
– É...
– Não, é sério, você nunca sabe o que vem no dia de amanhã, pode acontecer qualquer coisa! De repente os alienígenas invadem o planeta, nos escravizam, e aí?
[chega o terceiro com a bandeja. Senta]
– O que vocês estão falando aí?
– Ele tá viajando aí com a ideia de uma invasão alienígena.
– Mas é sério, pô! Não tem como saber! Os índios, por exemplo, estavam vivendo aqui ha não sei quantos mil anos e, de repente, aparece aquela coisa no horizonte. Você acha que eles esperavam por aquilo? Veio do nada, de um dia pro outro mudou tudo.
– Aí pode aparecer alienígena para nos escravizar?
– Tudo pode acontecer.
– Não. Acho que antes eles vão começar a fazer trocas.
– Levarão nossos recursos naturais e ganharemos novos brinquedinhos tecnológicos.
– E aí nos escravizam.
– Não, primeiro vão nos catequizar.
– Com a grande religião cósmica?
– É isso aí.
[come. Muda de assunto]
– Blá , blá blá.
– Blá blá...
­[...]

terça-feira, 24 de julho de 2012

Desbarrancados

Era um dia normal, as pessoas dirigiam seus carros, olhavam seus relógios e ansiavam pela volta para casa. Aí os carros pararam, inclusive o meu. Peguei meu celular para olhar as horas e ele estava desligado. Nenhum carro se movia, e não era por causa do trânsito. Que droga! Eu já tinha sacado o que acontecera, só não queria acreditar. Pouco a pouco as pessoas foram saindo de seus carros e alguns, revoltados, atiravam seus celulares longe, praguejando. “Vamos embora daqui, gente”, disse eu para aqueles que estavam ao meu redor, “sendo otimista, não restará nada num raio de uns 30 km de onde ela caiu... ao menos não é possível avistar o cogumelo, o que deve nos dar alguma vantagem”, prossegui.


Alguns poucos me ouviram, os outros continuavam tentando religar seus carros e se recusavam a deixá-los para trás. Eu simplesmente tranquei a porta do meu por hábito e levei as chaves comigo. Algumas pessoas começaram a cair, e eu fiquei com medo, muito medo, apesar de minha aparente calma. Eu e os poucos que me acompanharam chegamos a um barranco, não havia nada a perder, a radiação parecia se espalhar e resolvemos descê-lo antes que ela nos abatesse completamente. Era tão íngreme e escorregadio que despencamos, acho que demorou pelo menos uma hora escorregando, surpreende-me que tenhamos chegado vivos até ali. De qualquer forma nada tivemos a perder, a essa hora já teríamos morrido se tivéssemos ficado para trás.


Chegamos a uma mata fechada e percebi que meus olhos ardiam; alguns de meus companheiros já não podiam mais ver. Avistamos uma casa com a porta entreaberta. “Seja lá quem for o dono desta casa, parece tê-la abandonado” A cama estava no quintal e, exaustos, alguns se debruçaram nela e por ali ficaram. Eu resolvi explorar o interior da casa, se era para esperar algum resgate, que fosse com algum conforto. Foi quando percebi que o chuveiro estava ligado e alguém cantava lá dentro. Voltei para o quintal e disse:


 – Acho que não podemos ficar aqui, o dono parece estar lá dentro.


– E que alternativa temos – retrucou alguém cujo rosto não identifiquei.


– Não sei, mas a casa não é nossa.


– Quando não se tem nada a perder, por tudo se pode lutar. Vamos ficar.


Eu sabia que ele estava certo. Morreríamos todos, cedo ou tarde. E, enquanto o proprietário misterioso continuava a cantar no chuveiro, resolvi abrir a porta da frente da casa. Deparei-me com um condomínio fechado e avistei outras casas iguais à que estávamos. Crianças brincavam na rua e pareciam não desconfiar do que havia acontecido. Tornei a fechá-la. Na sala, meus companheiros me observavam, colocando a mesa para jantar. Eu já nem me lembrava por que estava ali, nem como eu havia chegado, mas sem dúvida, aquele era meu lar. Não havia mais ninguém tomando banho. A imagem à minha frente se esvaiu, tudo ficou branco, de repente preto. Acordei confusa.

domingo, 22 de julho de 2012

Diálogos do Trem - As crianças e seus adultos

Diálogo 6: Amor de mãe e filho

– Você tá com 38 quilos, daqui a pouco tá com 40! Vai virar uma bola.
– E você daqui a pouco vira uma jamanta.
– Jamanta eu já tô.
– Vai virar uma baleia então! Uma baleia fora d’água!
[mãe mostra a língua]
[silêncio]
– Eeeei! Coisa feiaaaa! – diz a mãe.
[filho mostra a língua]
– Feio, horrorosoooo! Lá, lá, lá...
[filho mostra mais a língua]
– Nossa, parece um macaco!

Diálogo 7: O doce aroma do Rio Pinheiros

[som de ânsia de vômito]
[fala uma menina]
– Ai que cheiro de cocô...
[repete o som de ânsia de vômito]
[menina continua a falar]
–Ai... passa logo esse fedô... Mãe! Manda esse ônibus [?!?!] ir mais rápido... argh.
[muitos narizes se escondem nas camisetas]

Diálogo 8: Uma viagem pra lá de espe(a)cial

[menina se debruça na janela]
– pizzzz ziiummmm pi pi prrrr  Vejam, vejam só! Que vista boa nós temos aqui! É possível ver toda a Terra! Que coisa mais linda...
– Ver a Terra? Do que você está falando, menina?
– Nós estamos em uma nave espacial que saiu do planeta Bink!
– Ah... é?
– Olá, sou um visitante do planeta Bink.. pi pi prrr piiii! Eu vim em paz, mas.. adeus! Eu tenho que voltar. Pi pi prrrr zzzzzzz ssshhhh olha só onde agora estou! Que mundo lindo! Que maravilha, posso visitar vários mundos! Pi pii prrrrr pi zzzz Estamos avistando mais um planeta! Será Marte? Pi pi prrrr Oh, não! Invasão! Invasão!
– Volte ao planeta Terra agora, temos que descer.
[avó puxa a mão da menininha]
– Mas os aliens! Os aliens estão chegando! Pare!!
– Vamos logo, menina!
– Oh não, os aliens estão invadindo...
[irmão chato intercede]
– Eu vou estourar isso [segura o balão vermelho da menina] se você não ficar quieta!
– Para! Eu tô no meu mundo... Ahhhhhhh! Você é o alien que invadiu o meu mundo!

terça-feira, 17 de julho de 2012

O dia do pagamento

Você chegou à metade do mês, seu salário há muito já foi embora ou então, fazendo as contas, percebe que, proporcionalmente, já gastou muito mais por dia do que conseguirá gastar a partir de agora. Aí você aperta as calças, deixa de sair e reza para que o dia do próximo pagamento chegue logo. Reza para que os dias passem rápido, muito rápido. Deseja que as horas corram, que os dias voem. E ai o tão esperado pagamento chega. E o dinheiro, de novo, vai embora. E tudo se repete. Depois reclama que a vida é curta!

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Mais um caso de amor

Ela caminhava observando o local, olhava admirada tudo o que estava à sua volta, alguns flertes eram inevitáveis, e ela gostava, sentia-se atraída, mas continuava apenas a observar. Foi quando ela o viu. Tudo ali, de repente, pareceu-lhe escuro e apenas ele se destacava à sua frente. Caminhou em sua direção, fez menção de tocar-lhe a fronte, mas hesitou, recolheu a mão, o braço, olhou para baixo e se virou na direção oposta. Ele então lhe disse:


– Não vá embora, fique. Eu estava esse tempo todo esperando por você.


– Eu não posso... – ela respondeu.


– Por quê? Eu bem vi como você me olhava.


– Eu simplesmente não posso!


– Mas eu sei que você me quer, pense nas noites incríveis de prazer que podemos ter juntos.


– Eu, eu... não tenho tempo para isso!


– Ora, claro que tem, eu bem conheço o seu tipo, e sei que você não resiste a tipos como o meu.


– Você não sabe o que está dizendo...


– Ora, claro que sei! Vamos, aproxime-se, venha, veja como sou bonito, robusto... mas, o mais importante, eu também tenho conteúdo e muito a lhe oferecer.


– Você me provoca...


– Não resista... vamos embora daqui juntos, você não vai se arrepender.


– Você deve saber que o meu coração não pode ser de um só.


– Eu sei aguardar o meu momento, eu sei esperar, logo você perceberá quanto tempo perdeu até me encontrar.


Ela não podia resistir, sabia que ele estava certo. Eles sempre estão certos, mesmo que não dure muito, sempre valia a pena a experiência, era algo irresistível, incontrolável. Ela não podia mais aguentar e o agarrou. Após os momentos de admiração mutua, levou-o consigo.


Quando ela chegou ao seu quarto, ela ainda estava abraçada a ele. Com carinho, disse-lhe.


– Mal posso esperar para estar só com você.


Acariciou-o e colocou-o junto aos outros na estante. Logo após, voltou para a cama e pegou o outro livro que a esperava ansiosamente por mais uma noite de puro prazer.

quinta-feira, 28 de junho de 2012

O passado que não era seu

Naquela noite ela foi dormir cedo, fechou os olhos exaustos e adormeceu profundamente. Pouco tempo depois, ou muito tempo depois – sem a mínima noção de tempo ou espaço – abriu os olhos, tudo parecia meio desfocado, piscou algumas vezes tentando ver com nitidez, o que não ajudou muito, parecia-lhe que seus olhos enxergavam dentro da água escura com alguma meia luz indicando algumas formas. Tudo estava desconexo.


Decidiu se levantar, tirou seu cobertor, que parecia mais pesado que o comum, e quis descobrir onde estava. “Mas é claro que estou em casa” pensou “Devo estar com algum problema na visão, meu Deus! Será que...” foi então que, como uma maquina fotográfica automática, seus olhos buscavam incessantemente o foco até que o encontrasse e ela se percebeu em um corredor iluminado por algumas velas afixadas na parede, algumas apagadas. “Eu já vi um corredor desses em um filme medieval... ah! Claro, estou sonhando!” concluiu, e seguiu caminhando através do estranho caminho. Ela provavelmente estava dentro de alguma passagem subterrânea de um castelo, daquelas que levam para salas secretas ou rotas de fuga.


Ela via coisas jogadas pelo chão, “Que sonho mais estranho...” e continuava a caminhar. No corredor encontravam-se objetos que não pareciam pertencer àquele ambiente tão antigo, ela viu um mp3 player, alguns CD’s jogados e muito riscados, alguns estavam quebrados. Havia também livros, muitos livros, mas não daqueles escritos à mão e costurados com capa de couro, eram edições modernas e impressas por editoras como Conrad e Companhia das Letras: entre os livros estavam contos de horror, ficção científica, histórias em quadrinhos e romances. Olhou para tudo aquilo com estranheza. Viu fotos jogadas que não reconheceu, algumas com imagens de pessoas felizes reunidas, outras estavam rasgadas, parecia faltar alguém. Observou algumas televisões com imagens distorcidas de rostos estranhos e eventos que não lhe eram familiares.


Durante o percurso, começaram a aparecer portas pela parede, algumas pequenas, outras grandes. Dentro das que estavam abertas ela conseguia ver coisas lindas, imagens de cachoeiras, bibliotecas e muitos, muitos flashes de shows rock, cada um acontecendo em uma porta diferente. E se voltasse para uma porta anterior, era possível ver pedaços do show acontecerem de novo, ela conseguia visualizá-lo através de narrações feitas por uma voz muito doce.  Mas uma grande e considerável parte das portas estava lacrada com blocos de pedra, era impossível saber o que tinha ali. “O que será que tem por trás dessas pedras? Eu gostaria muito de entrar...” e então, quase que instantaneamente, ouviu uma voz suave “Essas memórias não lhe pertencem”, a voz era tão suave e tão distante que ela não pode ter a certeza do que ouviu, e continuou a andar e observar tudo aquilo com muita atenção.


Após algumas horas de caminhada, no meio das portas lacradas, encontrou uma que parecia ter sido recentemente arrombada, estava escuro, um completo breu, não era possível enxergar um milímetro diante dos olhos, e mesmo assim ela entrou. Aquela voz, que agora estava forte, voltou a se pronunciar “Você está entrando em um passado que não é seu” e, ignorando o aviso, continuou. Tropeçou em alguma coisa, esbarrou em algum tipo de móvel, derrubou-o e ela caiu no chão, em cima de algo que acabara de se estilhaçar. Suas mãos estavam sangrando, ela pode sentir o quente escorrer por entre seus dedos. Saiu pela porta, pegou uma das velas do corredor e novamente entrou “Eu podia ter feito isso antes...” e então voltou a olhar para frente, procurando os restos daquilo que havia se quebrado.


Era um porta-retrato com o vidro totalmente estilhaçado pela queda e, ao redor, flores murchas e pedaços de cartas rasgadas. Pegou o porta-retrato que estava virado para baixo, tirou os restos de vidro dele e ficou olhando para ele por alguns instantes. “Está vazio...” disse a si mesma em voz baixa. Repentinamente o objeto foi retirado de suas mãos. Ela olhou assustada e viu diante de si um homem que não se mostrava totalmente à luz da vela, mas percebia-se que ele vestia uma armadura e uma capa preta, era alto e imponente. “Isto não diz respeito a você”, disse o misterioso homem. Era a mesma voz que ouvira antes nas salas dos flashes de shows e no corredor. Ela o olhou encantada, queria falar-lhe, mas as palavras sumiram, tocou-lhe então a mão e fitaram-se por alguns segundos, houve um rápido momento de reconhecimento mútuo e, então, ele desviou o olhar, deixou o porta-retrato cair de suas mãos e cerrou os olhos dela suavemente com seus dedos. “Isso não diz respeito a você... “ repetiu, “não diz...” suspirou. Beijou-lhe a face, ela abriu os olhos e saiu pela porta por onde entrou, voltou ao corredor, devolveu a vela ao seu lugar e, quando olhou para trás, a porta estava lacrada. “Agora eu preciso acordar”, sentou e esperou. Cansada de esperar, adormeceu. Acordou com o alerta vibratório do celular. Olhou à sua volta até reconhecer onde estava. “Que coisa mais clichê”, pensou, “ter um sonho, acreditar que é um sonho mesmo, acordar e então perceber que não era... bom, preciso de curativo para as minhas mãos.”

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Diálogos do Trem – O dia dos namorados

Diálogo 1: A otimista

– Amor, obrigada!
– Pelo quê?
– Pelo presente.
– Que presente?
– O que eu vou ganhar.

Diálogo 2: A ignorada

– Alô, alô.... Alô! Oooi, Amor! Amor...? [silêncio] Droga.

Diálogo 3: Ah, o amor...

[Atende o telefone]
– Vou dar um soco na sua cara, vou te deixar banguelo nem que eu tenha que engessar minha mão no dia seguinte. Você conhece a minha fúria, tira essa aliança pra você ver! Tem onze meses que te aturo, onze meses que te suporto! Você... Atacada? Eu? Cê vai ver o que é tá atacada...

Diálogo 4: Mensagem de texto

Tec tec tec tec tec tec     tec tec   tec [digita mensagem de texto]
Tic [aperta enviar]
[silêncio]
[Escorre uma discreta lágrima]

Diálogo 5: Uma cantada fora de hora

[Aborda um rapaz bem apessoado]
– Oi, por favor, você sabe como faço para chegar ao Shopping Bourbon?
– Se você caminhar comigo, eu te levo até lá!
– Você está indo pra lá?
– Não estava, mas com você eu vou.
– E você sabe onde fica?
– Podemos descobrir.
– Moço, eu tô com pressa! Preciso fotografar um show que vai ter lá no teatro!
– Ah...! Bom... é... vira ali à esquerda, segue reto, tem um shopping, acho...

domingo, 10 de junho de 2012

Humanidade

O mundo no qual vivia não era perfeito e, tampouco ele próprio, principalmente agora. Mas ainda havia algo ou alguém que precisava ser salvo, que não merecia desaparecer. Não devia deixar-se dominar novamente pelo ódio, precisava manter-se confiante sem nunca se render. Acreditando nisso, quem sabe se no fim não acabariam criando realmente uma nova época, uma realidade melhor.

Licia Troisi, O Talismã do Poder - Crônicas do Mundo Emerso

Sinto que a humanidade está perdendo o sentido. Está ficando cada vez mais difícil encontrá-la por aí, alguns dizem até que amam os animais e odeiam as pessoas. Já eu prefiro acreditar que esse sentimento surge de apenas de uma revolta e não nasce da essência humana que brilha dentro de cada um. Não é algo verdadeiro, pelo menos não deveria ser.

O homem destrói a natureza, maltrata os animais, faz coisas que nos deixam estupefatos, atingem a nós... nós, humanos! Humanos que se compadecem, que se revoltam, que lutam contra a crueldade. Humanos que criam, humanos que curam, humanos que se preocupam, humanos que dedicam a sua vida a outros seres, sejam eles humanos, vegetais, cachorros, gatos, patos, golfinhos, baleias, sereias. Tudo isso nasce da humanidade à qual todos nós pertencemos.

Mais produtivo que odiar a humanidade é se integrar definitivamente a ela, pois se é o homem que destrói, é também essa mesma espécie que constrói. Provém da capacidade de criação humana a existência do computador que você usa para digitar e a rede que você usa para propagar o asco a quem lhe proporcionou esta ferramenta. Negar a humanidade é negar a si mesmo, é tentar, sem êxito, se eximir da culpa de existir e fazer parte da sociedade que integramos.

Se a humanidade te exaure e a lealdade e o carinho de um animal te comove, lembre-se de que sempre haverá um humano para retribuir, receber e propagar esse afeto. Sempre haverá quem cuide – o trabalho de veterinário, afinal, é realizado por uma pessoa, não um cachorro – sempre haverá o verdadeiro lado humano, aquele que cria, que luta, se indigna, que reflete, na arte, a arte de existir, amar e criar tudo que nos enche os olhos.

Quando tudo então parecer perdido, quando nada mais fizer sentido, quando a desgraça humana lhe tomar de assalto e roubar toda a esperança, ouça aquela música que lhe transcende e desconecta do mundo; é graças à humanidade que ela existe, e então você se lembra que sempre existirão motivos pelos quais continuar a acreditar.

quarta-feira, 30 de maio de 2012

Escrevendo mea culpa

Hoje pela manhã li algumas palavras que me fizeram pensar. Repensar, na verdade, sobre coisas que sempre estiveram sob uma massa nebulosa e imprecisa orbitando minha mente e que, de repente,  tomou a forma de uma bigorna e atingiu em cheio a minha cabeça. Palavras de um texto de uma desconhecida, um comentário, uma “atualização de status”, que emergiram do famigerado e “inútil” Facebook (ou talvez inúteis sejam as pessoas que não sabem usá-lo) e trouxeram à tona reflexões há muito entorpecidas.


Não sei qual é meu papel neste mundo e, quanto mais tento buscá-lo, parece-me que mais perdida eu fico. Desorientada, bombardeada por informações e fontes de conhecimento sem saber para onde ou o que direcioná-las. E então eu escrevo. Escrevo para quê? Para quem? Por quê? Porque, já dizia o poeta Paulo Henriques Britto, “[...]a coisa dá prazer / Dá uma formidável sensação / (mesmo que falsa) de estar sendo ouvido.”  Escrever é gritar em silêncio e esperar que alguém ouça, é escolher as palavras certas na intenção de atingir ao menos uma pessoa e para ela fazer a diferença, assim como as palavras lidas na manhã de hoje me atingiram (e quem escreveu nem o imagina) e, nesse aspecto, as palavras, ainda que signos à frente de uma massa amorfa, têm um papel crucial.


Estamos rodeados de revolucionários de sofá, dispostos a compartilhar ideias e pensamentos na rede, mas sem ao menos refletir, colocá-los em prática ou trazê-los do virtual para a vida cotidiana. Carrego mea maxima culpa por não fazer mais do que escrever, mas talvez sejam a reflexão e a consciência os primeiros passos para uma mudança, seja lá de qual natureza for.


O Iluminismo nada seria não fossem aqueles que o teorizaram, o movimento não foi sozinho às ruas sem uma base para sustentá-lo. Longe de mim acreditar que estou concatenando palavras capazes de dar origem a uma revolução, apenas tento entender por que tanto escrevo, por que tanto busco algo que ainda não encontrei. Se isso alivia a consciência? É exatamente o oposto, ela deixa bem evidente a minha pequenez humana e o quão difícil é lidar com ela; quando um nível de consciência é despertado, ele jamais poderá adormecer novamente.


Eu preciso começar um livro, antes que eu perca a esperança (em mim e no mundo).

sábado, 26 de maio de 2012

O silêncio

O silêncio às vezes incomoda. Geralmente ele é combustível para uma imaginação desenfreada, daquelas a la égua ibera do Bentinho e, sem um mínimo de controle, pode gerar monstros que escapam por um portal causando destruição a esta realidade paralela. Ele transforma a mente em um campo minado ou um barril de pólvora à espera de um fósforo aceso.


Eu devo confessar que não me dou bem com o silêncio e, no momento em que escrevo, a vitrola roda Delicate Sound of Thunder. Muitas vezes, o silêncio é tão intenso que o barulho fica insuportável, tudo parece evoluir uma bateria de escola de samba dentro da cabeça, aí então um bom disco ajuda a afugentá-lo; e aquele suave arranhado proveniente do atrito entre a agulha e o bolachão conferem-me um pouco de paz.


As expectativas geradas pelo silêncio à espera de sua quebra podem te engolir; dominá-lo é uma arte e, uma vez controlado, tem-se aí um aliado. O silêncio é um espelho ou um lago cristalino e calmo que reflete um estado de espírito, toda a bagunça ou serenidade que ali aparecer dependerá exclusivamente do que lhe for defrontado; e o outro que me habita insiste em mostrar-lhe uma carranca.

sábado, 19 de maio de 2012

Brainstorm da morte


A mortalidade é algo difícil de encarar. "Aquilo que não nos mata, nos fortalece." Pode até ser, mas o que nos mata nos mata, e isso é dureza... O que é preciso fazer para a vida ter sentido? 


 Neil Gaiman, Sinal e Ruído.



Aquilo que acontece de acordo com o esperado deveria ser chamado de utopia, mas não é, porque a utopia, de fato, está em um plano além das possibilidades físicas, e nada acontece de acordo com o esperado. Esperar, então, é algo que se faz no plano das ideias: espera-se atingir algo que nunca será atingido, não da forma como é projetada mental e emocionalmente. Todos esperamos a morte. Não se sabe como, quando e nem onde, mas a ela chegará.  Se virá em cima de um cavalo, dentro de um capuz preto e empunhando uma foice, se é feia, se é bela, se será grandiosa ou apenas um beijo silencioso no meio da noite, no início da manhã ou ao longo do dia, não sabemos. Mas todos esperamos a morte. Esperamos, não ansiamos. Mas isso vai de cada um, alguns anseiam pela morte. A morte pode ser uma ótima fuga, ou talvez a sentença para uma prisão perpétua. A vida também pode ser uma fuga para a morte. Aliás, morte é vida, todos sabem que sim. É preciso que haja a morte para o equilíbrio da vida, ou ela acaba. Sempre foi assim. Essa é uma das poucas coisas que não mudam, sempre foi e sempre será assim. Algumas pessoas acreditam que outras coisas não mudam, mas não é verdade. Tudo, ou quase tudo, sempre muda. Até a morte muda. Antes morríamos muito cedo, agora morremos mais tarde; temos a ciência auxiliando nisso. Um dia ela vai descobrir um jeito de vivermos por tanto tempo que vamos ficar loucos. As pessoas não se aguentam por muito tempo. Em média vivemos menos de 100 anos e já estamos nos matando. Nós vamos passar dos 100, um dia vamos. Alguns já passaram, mas não devem aguentar muito. O que quero dizer é que nós ainda vamos ser jovens aos 100 anos. Os 200 serão os novos 80. Alguns cruzarão essa linha, outros morrerão antes. Mas seremos velhinhos aos 200 anos. E continuaremos nos matando, prolongando as desgraças humanas. Ou talvez tudo seja diferente, quem sabe? Nós vamos viver mais, teremos mais temo para aprender sobre o amor. Pode até ser que ele se revele e deixe de ser essa forma abstrata que aparece nos livros, na prosa, na poesia. Talvez caia a máscara cristã que o circunda e descubra-se que o amor é universal e, quem sabe, um Elemental. E aí paramos de nos matar, encontremos a paz. Mas, sem a guerra, não existirá paz. Não há no mundo senão diferenças, ou algo assim. Acho que estou deturpando Saussure. De qualquer forma, é a partir das diferenças que se sobressaem os significados. Sabemos o significado de paz porque conhecemos a guerra. Haverá sentido em um mundo sem dicotomias? Todos esperamos a morte, deixo essa pergunta aos meus descendentes.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Foi um acidente

Caminhava na beira do rio, curtindo a brisa e pensando que, de repente, mergulhar poderia ser bom; a água parecia limpa e, embora não fosse cristalina, estava convidativa. Entretanto, haviam certos receios: o rio poderia ser fundo e, se a correnteza estivesse forte, poderia carregar o corpo sabe-se lá para onde. Ademais, e se a água estivesse gelada? Aproximou-se lentamente e, cautelosamente mergulhou a ponta dos dedos para sentir a temperatura e pôde verificar que estava agradável, e então, chegou mais perto a fim de sentir um pouco mais. Um segundo de desatenção e tchibum! de roupa e tudo. Foi um acidente; quis evitar o hábito de mergulhar imediatamente, mas aconteceu contra a sua vontade. Agora a correnteza vai levando; e espera-se que não ocorra outro afogamento.

terça-feira, 24 de abril de 2012

Interna porfía

Uma Ode cantar-vos-ia
posto que o cinza latente
tanto se faça presente
Recitá-la-ia hoje e todo dia

não fosse a tempestade
que no desbotado da cidade
não reflete profundamente
e apenas no peito se sente.

Ofereço-vos, pois, não
um poema repleto de alegria
mas de toda minha emoção

nasce mirrada uma elegia
fruto de interna porfia
que abate o sofrido coração.

domingo, 22 de abril de 2012

A macromolécula do tempo

Falar sobre o presente não é lá muito fácil, é um assunto recorrente literatura, na poesia, em textos de análises filosóficas, mas definir o que é presente – tão forte na lírica de Gregório de Matos, do tempo que “trota a toda ligeireza / e imprime em toda a flor sua pisada” – não é tão simples quanto faz parecer o senso comum. O significado¹ de presente é muito mais profundo do que o seu significante² pode mostrar: a massa amorfa³ que o circunda abrange uma esfera que vai muito além do próprio signo4.


O presente é uma fagulha, a unidade mínima – partícula imensurável – do tempo e do espaço que, devido à sua efemeridade, tornar-se-á passado tão logo se mencione ou reflita sobre ela. Um conjunto dessas partículas é o que se poderia chamar de momento: uma macromolécula composta por essas unidades mínimas, resultando no que é visível e/ou perceptível aos outros sentidos, mas que se esvai num piscar de olhos.


Um momento pode ser um bocejo, um passo, um grito, um abraço, um beijo, um copo de cerveja. Pode ser uma rajada de vento, uma divagação, uma conversa, uma troca de olhares ou um descompasso no coração. Momento é tudo aquilo que vivemos, e, para torná-lo marcante, depender-se-á exclusivamente do sopro sobre uma única partícula que determinará o desencadeamento de tudo que vier pela frente: um momento que, como qualquer outro, será diferente de todos.


Os momentos não são perdidos, são guiados, transformados. O que se perde são as oportunidades por eles geradas; estas dependem das escolhas: uma mudança na disposição das partículas pode transformar um momento e, então, uma oportunidade ou se vai ou se cria. As oportunidades? Não, elas não aparecem, são criadas. Perdê-las é simplesmente uma questão de dormir no ponto ou piscar os olhos no momento errado.


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1 e 2 Princípio linguístico saussureano no qual  significante é a imagem acústica (neste caso, o som emitido ao se pronunciar a palavra) e significado é o conceito a ele atribuído.  

3 Segundo Saussure, a massa amorfa é uma ideia nebulosa, o pensamento em si, onde nada é delimitado nem preestabelecido antes do aparecimento da língua.

4 União de um conceito (significado) a uma imagem acústica (significante).

sexta-feira, 20 de abril de 2012

O Plano dos Gatos

Lyra e Zé Tigrão observam Roberta, que está jantando. Os gatos conversam entre si. Lyra se dirige ao quarto de Roberta e escala até a prateleira mais alta. Lá de cima, a gata derruba uma caixinha que possui gavetas, esta se estraçalha no chão. Roberta, atordoada, larga no braço do sofá o prato de comida e se dirige ao local de onde vem o barulho. Ela constata o estrago, arranca a gata da prateleira e volta para a sala a fim de terminar a janta. Para sua surpresa, Zé Tigrão terminava a refeição por ela. Do quarto retorna Lyra, que pergunta a Zé Tigrão:


– Conseguiu?


O gato responde, lambendo os bigodes:


– Foi um plano perfeito!