quinta-feira, 18 de outubro de 2012

O assassinato de Lewis Carroll

Era noite e chovia muito, o clima estava propício para reflexões profundas e depressivas. Ela então entrou num bar e sentou à mesa. Observando a chuva, pensava na vida que levava; nada parecia fazer sentido, é tudo tão efêmero, tão superficial! Tentava encontrar pontos relevantes que lhe indicassem algum caminho, mas tudo o que via era um dia nublado que bloqueava a passagem de qualquer raio de sol. Perdeu-se em seus devaneios. “A senhora vai pedir alguma coisa?” interrompeu-lhe os pensamentos o garçom, que estava preocupado em liberar a mesa para algum cliente pagante. Ela pediu então uma cerveja. Servida,  enrolou com o copo cheio enquanto perdia-se em suas reflexões. Sacou seu bloco de notas, uma caneta, esboçou palavras sem sentido, olhava para o papel e bufava impaciente esperando alguma inspiração. Não percebeu quando um homem de cabelo chanel, terno preto, de aspecto empoeirado, e gravata borboleta, que parecia ter saído diretamente do século XIX, sentou-se à sua frente.


“Olá, o que está escrevendo?”


“Perdão?”


“O que escreve aí? Me interesso pelos meus discursos metalinguísticos.”


Perplexa, pensou em levantar da mesa, quem era aquele maluco, afinal? Que ousadia dirigir-lhe a palavra, um louco, certamente. Mas aquele rosto lhe era muito familiar, onde o tinha visto? Balançou a cabeça, começou a recolher suas coisas e preparava-se para levantar.


“É, eu escrevi essa cena. Mas... fique mais um pouco, sua cerveja está intocada.”


“Mas quem é você afinal? O que você quer?


“Você sabe quem eu sou.”


 Olhou profundamente nos olhos dele, viu aquele cabelo, aquela vestimenta e então pensou estar fora de si.


“Lewis Carroll?”


“Se assim você me vê.”


“Não é possível.”


“Sou aquele que escreve os seus pesadelos.”


“Meu autor!”


“Seu senhor.”


“Meu autor é Lewis Carroll... isso explica muita coisa.”


“Você ainda não me respondeu o que estava anotando.”


“Bem, você é meu autor, então deveria saber.”


“Às vezes os personagens criam vida própria. Você também escreve, deveria saber disso."


“Se eu sou sua personagem, o que eu escrevo é o que você escreve sobre o que eu escrevo.”


“Não quando saem fora de controle. Vamos, mostre-me, quero saber.”


“Se os seus personagens fogem, recupere-os por conta própria.”


“É o que vim fazer.”


“Então boa sorte, não mostro minhas anotações para qualquer um.”


“Eu não sou qualquer um, você está perdida porque eu tive um bloqueio criativo.”


“Você está morto!”


“Estar vivo ou morto é apenas uma questão de perspectiva. Eu vivo no imaginário coletivo, eu estou aqui porque você me vê.”


“Já sei o que vou escrever nesse bloco.”


“Gosto quando meus personagens me dão ideias. Só não pense em atravessar um espelho, porque isso já está meio ultrapassado."


“Eu vou escrever o assassinato de Lewis Carroll.”


“Eu não fui assassinado.”


“Será.”


“Você não conseguiria me matar.”


“Veremos.”


Dizendo isso, pagou a cerveja que não tomou, levantou-se e rumou à estação de metrô. Lewis a seguiu.


“Você vai mesmo me acompanhar?” Disse-lhe, já esperando o trem na plataforma do metrô.


“Sim, mergulhar na história da personagem é a melhor forma de compreendê-la.”


“Se assim você deseja, vamos lá.”


Terminou de falar e empurrou seu autor no trilho, que foi atingido em cheio pelo trem.


“Já foi?” Disse. Entrou no vagão e sentou.


“Essa foi boa” disse-lhe Lewis sentando ao seu lado “Qual será a próxima?”


"No caminho a gente vê."

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Um quase brainstorm do verbo que se tornou intransitivo.

Ficar: verbo de ligação, transitivo direto ou indireto. Ficar em algum lugar, ficar triste, ficar feliz, ficar em casa, ficar enjoado, ficar sozinho, ficar de cara,  ficar com alguém; é a partir daí que ele se tornou também intransitivo, mais um significado para o significante. Foi nos anos 90 que essa coisa tomou forma. A ideia já existia, a ação já estava lá, mas ela não tinha um nome, não era oficial, não era um status. A coisa, por assim dizer, era uma massa amorfa, aquela ideia nebulosa de Hjelmslev, o pensamento não delimitado até o aparecimento da língua. Pois é, o conceito da coisa se uniu a uma imagem acústica e nasceu o signo. Agora a ideia nebulosa tem forma, tem nome,  ficar é um verbo intransitivo que designa uma ação específica, a ação de ficar com alguém e não estar com ninguém. Ficar transformou-se em um status socialmente incorporado e bem aceito; do verbo nasceu o substantivo ficante, e o mundo se preencheu de ficantes. Ficantes são amantes temporários, aquele tipo de coisa que era considerada cafajestagem e agora é uma opção, viver sem compromissos rumo à solidão. Era uma gíria entre os adolescentes, e a coisa cresceu e um signo se estabeleceu. Temos agora um bando de adultos agindo como adolescentes, com a vida emocional bagunçada e assumindo um relacionamento informal. Aliás, isso chega a ser um oximoro, pois a ideia de ficar é justamente não assumir coisa alguma. É consequência do turbulento século XX, as pessoas se esqueceram de quem são e a superficialidade da vida transpôs-se para os relacionamentos. E o século XXI prossegue com os efeitos colaterais de uma sociedade em ruínas, de pessoas intelectualmente sedentas e emocionalmente imaturas que sofrem sem nem saber por quê.