terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

E ela era tão bonita...

Ao ligar a TV, via-se o apresentador exacerbar indignado:


“O Brasil está em choque com o crime! Ela, que era tão jovem, tão bonita, foi brutalmente assassinada pelo namorado! O namorado! Agora me diga, telespectador, isso é amor? Que amor é esse que mata? Que falta de Deus no coração! Aqui, mais um close na foto da menina, apenas 17 anos, tão bonita! Tão jovem! Morreu nas mãos de um marginal que se dizia apaixonado, apaixonado! Congela a imagem, congela! Aí está o meliante, mal encarado! Um traficante, merece apodrecer na cadeia! Você que está ligando a TV agora, esta moça, esta linda moça, foi brutalmente assassinada com 27 facadas pelo namorado por ciúmes! Falta Deus no coração das pessoas. E a polícia diz o quê? Onde está o criminoso? Ele tem que pagar pelo que fez, vamos entrevistar os vizinhos que testemunharam o crime. Fique ligado, voltaremos logo em seguida!”


- Nossa, que horror isso, né, menina?


- E ela era tão bonita, tão jovem, tinha uma vida inteira pela frente!


- Moça de bem, de família, não merecia isso.


- Se fosse feia seria diferente.


- Gente feia pode morrer, não choca.


- Na periferia isso acontece todos os dias. Gente feia morre o tempo todo, só não aparece na TV. é normal.


- É triste, né. Mas, também, esse povo pede, periferia só tem trombadinha.


- Mas poxa, tão bonita, tão loira, tão branca, olhos tão azuis, de família, moça de bem.


- É, ela não merecia, mas pediu. Tinha que se envolver com esse povinho da favela?

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Feliz ano novo

A cada dia
feliz ano novo
A cada semana
feliz ano novo
A cada beijo
feliz ano novo
A cada momento
feliz
feliz ano novo.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Cansaço

Discussões rasas me cansam. Angústias me cansam. Medos me cansam. Os dias me cansam. Os olhares perdidos me cansam. O coração me cansa. Cansaço me cansa. Conteúdo me cansa. Vazio me cansa. A vida se cansa do que cansa. Eu canso, tu cansas, eles cansam, nós cansamos e cansaremos.  Viveremos, cairemos, levantaremos, e continuaremos a cansar. A vida não me cansa. 

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Eu cruzei o seu caminho

Eu cruzei o seu caminho. Você estava ali, deitado, frágil, desprotegido. O sol batia forte e parecia queimar-lhe a pele, mas isso não parecia incomodar. Você dormia, ou talvez estivesse apenas entorpecido. Se sentia fome, o torpor escondia, se ardia em febre, o torpor disfarçava. Ninguém olhava, ninguém percebia, você era invisível, mas eu vi. Eu vi... por que eu vi? Se eu vejo e nada faço é o mesmo que não ver, dá-me a culpa de viver, de sonhar, de achar que tudo está bem. Não está. Nada está bem. O papelão lhe acomoda como cama, e você dorme, dorme para esquecer a dor, a sujeira que lhe deixa invisível. A sua dor incomoda, a sua existência incomoda. Você não deveria existir, não deveria estar ali, atrapalhando meu caminho, incomodando a minha consciência. Você é capaz de me mostrar a verdade sobre essa sociedade. Mas por que eu vejo? Tantas pessoas escolhem não ver, é mais fácil, é muito mais fácil. Não é justo, eu vejo e nada faço e isso não me torna melhor do que aqueles que não veem. Sou igual, ou pior, e ainda sinto a dor de não sentir a sua dor.

Não está

Acordei um pouco confusa, olhei para o lado e apenas vi a hora. "Não está aqui". E por que haveria de estar? Não havia indícios de que estaria lá. Ou havia? Não sei. "É tão estranho como a mente prega peças", pensei. Jurei que estava, mas foi só colocar os óculos para perceber que realmente não estava; foquei, olhei de perto, franzi a testa e constatei: "realmente, não está aqui". Talvez nunca esteve, foi uma ilusão. Costumava ficar ao lado do relógio, mas não havia nada, nem um sinal de que esteve ou que viria em breve. Olhei para cima, suspirei, "talvez amanhã esteja. Ou não.", e voltei ao pequeno mundo dos sonhos esquecidos.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Lispérdi

Lispérdi era assim: repetia lispérdi o tempo todo, e fora justamente isso que lhe dera a referida alcunha. Para tudo que lhe perguntavam, ele prontamente respondia: "lispérdi". Lispérdi também tinha o hábito de abençoar a tudo e a todos, não importa o que se fizesse, "deus te abençoe"; e, para ele, todos eram Doutores, Senhoras ou Senhores. Sempre que eu questionava alguma coisa a Lispérdi, ele imediatamente justificava com "lispérdi". Desisti de entender, então eu apenas fazia meu trabalho, conforme me era solicitado. E assim ele me respondia, "Deus te abençoe, Doutora." Já desisti de explicar que apenas merece o título de Doutor aquele que concluiu um Doutorado. Não adianta, Lispérdi é assim: primeiro "lispérdi", depois "Deus te abençoe", seja para Doutor, Doutora, Senhor ou Senhora. E a gente se acostuma com Lispérdi. Afinal, se a gente não se acostuma, noispérdi... a paciência com ele.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

A conversa da Nostalgia

Esta noite a Nostalgia veio me visitar. Chegou de repente para conversar, veio devagar, disse-me tantas coisas que à minha mente já haviam fugido, mas veio me lembrar que sempre estiveram lá, e sempre vão estar. Ah, Nostalgia, você é tão sutil, dá saudades de um tempo ao qual não se quer mais voltar, de um momento que não se deseja reviver ou resgatar, porque é especial por simplesmente estar lá, congelado naquele intervalo de tempo, pra sempre imutável. A Nostalgia falou comigo, fez-me sorrir, fez-me lembrar do que fui, do que sou, do que vivi e do que estou a viver. Lembrou-me de coisas das quais não me orgulho e tampouco me arrependo, lembrou-me da tensão, da performance, dos jogos de corpo, mente e alma. Lembrou-me que me encontrei, lembrou-me que me perdi de novo, e que agora volto a me buscar. Nostalgia, parte de mim, parte da vida.